27 - A ENCANTADA


27 - A ENCANTADA


 Duarte estava começando a se irritar... afinal de contas, Vicente parecia não se cansar. Já haviam visitado o padre do arraial, uns cinco benzedores famosos da região e um tanto mais de pais de santo. A todos ele fazia perguntas e ouvia as respostas com toda a atenção. Aparentemente, estava levando a sério aquela história de fantasmas e outros bichos... a história que deixou Duarte mais nervoso foi a da mulher que aparecia em noites de lua cheia e atraia os incautos até o rio, onde os abatia, sugando todo o seu sangue... coincidência ou não, todos os corpos sem sangue foram encontrados na beira do rio, ou próximo a ele. Quando Duarte perguntou a um dos pais de santo como seria essa mulher, recebeu um olhar de desprezo... como eles poderiam saber? Nunca ninguém que encontrara a tal mulher ficou vivo para contar a história... tudo bem, ele pensou... mas se ninguém que a encontrou escapou vivo, como é que sabiam que era uma mulher? Vicente olhou meio torto para ele, mandando a mensagem "cala a boca, deixa eles falarem"... E Duarte ficou em silêncio, sem mais perguntas... Já era noite alta quando Vicente se deu por vencido e resolveu encerrar as entrevistas do dia... tinham cumprido um expediente puxado. Estavam saindo da casa de Pai João, um benzedor com fama sem igual. Conhecedor das doenças deste e do outro mundo, tinha sempre um remédio para o que quer que fosse... sempre acompanhado de uma reza e uma benção. Já estavam ganhando o portão do terreiro quando o preto velho chamou os dois e lhes entregou um amuleto para cada, recomendando que deixassem sempre pendurado em seu pescoço, para contarem com a proteção contra as forças do mal... Vicente agradeceu e colocou logo seu amuleto... Duarte ficou olhando por algum tempo para aquilo... mas mais uma vez o olhar de Vicente fez com que ele fizesse aquilo que era esperado. Pai João rezou, benzendo ambos os homens, e se despediu, dizendo a eles que enquanto mantivessem seus amuletos não precisariam temer as forças ocultas desse mundo... e lá foram eles caminhando pelas ruas do povoado, conversando sobre tudo o que haviam ouvido durante o dia.  Duarte não conseguia entender para que aquilo tudo iria servir. Afinal, "nunca tinha ouvido tanta besteira junta num lugar só"... mas essa noite ele começaria a mudar de ideia sobre o mundo do além...

Fazia já umas duas horas que os dois conversavam enquanto caminhavam pela orla do rio... de propósito ou não, Vicente guiara seu companheiro de investigação para aquele local que parecia ser uma das chaves para resolver parte do mistério. Era noite de lua cheia. Era a noite da encantada...  

Segundo um dos benzedores, "a encantada" era uma moça que ficara noiva, mas no dia de seu casamento foi traída pelo noivo com sua amiga... como vingança, ela sangrou os dois e bebeu seu sangue... isso a amaldiçoou para todo o sempre, ela foi condenada a viver no rio e em noites de lua cheia precisava saciar sua fome de sangue... e era aí que atacava os incautos... não discriminava ninguém... homem, mulher, gordo, magro, novo, velho... quem passasse em seu reduto nas noites de lua cheia servia para saciar sua fome...

- Seu Vicente, o senhor não acreditou realmente naquelas besteiras que a gente ouviu...

- Que besteiras, Duarte?

- Essas, da mulher encantada, por exemplo...

- Porque?

- Oras, porque... não tem nenhuma lógica...

- O que é que não tem lógica, Duarte?

- Isso... de ser uma assombração a responsável pelas mortes que estão acontecendo...

Vicente parou. De sua algibeira puxou um saquinho com fumo picado, pegou uma palha de milho e começou a enrolar um cigarro. Acendeu, tirou uma baforada. Estendeu o material para fazer cigarro para Duarte, que aceitou e repetiu o gesto de seu parceiro. E assim ficaram algum tempo, em silêncio, fumando seus cigarros tranquilamente. Quando a bituca já estava quase alcançando os lábios de Vicente, ele a jogou com um piparote, e o pequeno resto do cigarro caiu nas águas do rio. Ainda em silêncio, ele olhou para o céu, tirou seu chapéu e ficou como se estivesse rezando. Duarte o fitava, sem entender muito bem o que se passava. Finalmente Vicente terminou sua reza, recolocou seu chapéu e convidou o parceiro a se sentar em um tronco de árvore caído. Depois de mais algum tempo calados, Vicente quebrou o silêncio que reinava entre os dois....

- Me diz uma coisa, Duarte... você não nasceu aqui, não é mesmo?

- Não... eu vim da Capital...

- Então é um cabra letrado...

- Sim... estudei Direito em Coimbra...

- Uau... foi além mar... não gosta das Academias de nossa terra?

- Não é isso... é que meus pais são de lá... e eu queria conhecer as terras de meus ancestrais....

- Mas lá também há lendas sobre o mundo do além... na verdade, boa parte das histórias que ouvimos por aqui vieram de lá...

- Vicente, você é um homem esclarecido... lendas são historinhas para assustar as crianças... 

- Posso te falar uma coisa?

- Claro...

- Até a pouco tempo atrás eu corria por esse sertão perseguindo bandoleiros...

- E não é o que o senhor faz até hoje?

 - Sim, mas eu fazia isso para vingar a morte de minha família...

- Não entendo...

- Bom, eu usava uma máscara... e acabei me metendo em algumas encrencas por causa disso...

- E usava máscara porque?

- Já expliquei... era sinal de luto pela minha família...

- Espera... você não é...

- Por muito tempo eu cavalgava com o Corisco...

- ... Juvêncio? O Justiceiro?!!!...

- Sim, era assim que me chamavam...

- E como o senhor entrou para a polícia?!

- Bem, um dia cruzei o caminho do Doutor Aristides...

- O Federal?

- Ele mesmo... e aí me convenceu a deixar aquela vida de aventureiro sem eira e nem beira e usar meus conhecimentos da vida sertaneja a serviço da Lei...

- Mas o senhor já lutava pela lei...

- Não... eu lutava pela justiça... e algumas vezes acabava indo contra a lei...

- E aí o senhor entrou para a polícia...

- Sim...

- E aquele rapaz que o acompanhava?

- Foi por ele também que aceitei a oferta do Delegado. Paramos de correr por esse sertão e o rapaz foi estudar...

- E o que ele faz hoje?

- É um Delegado Federal, como eu...

- Uau... por essa eu não esperava... e onde ele está hoje?

- Bem, o senhor sabe... temos alguns problemas lá prás bandas da Bahia... ele foi designado prá lá...

Duarte ficou pensativo... sempre achou que o Juvêncio, de quem tanto ouvira falar, era apenas uma lenda do sertão... e agora, lá estava ele, em carne e osso na sua frente...

Estavam os dois observando as águas calmas do rio, quando de repente sentiram seu corpo se arrepiar. Aos poucos uma figura fantasmagórica começou a surgir nas águas que se tornaram um redemoinho... a noite parecia ter ficado mais  escura, as estrelas pareciam ter sumido do céu... era como se um manto escuro tivesse sido estendido por todo o firmamento... a figura começou a tomar forma humana... mas era simplesmente horripilante. Cabelos que se assemelhavam a serpentes, olhos que pareciam duas brasas, de tão vermelhas e brilhantes e uma língua bifurcada, como a das serpentes... mas conforme ia se aproximando da margem, sua figura ia se modificando. Quando colocou os pés na terra da margem sua aparência havia se modificado totalmente... agora era uma linda garota, com olhos que emanavam uma tristeza sem fim... e começou a caminhar em direção aos dois companheiros....

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