35 - A CONVERSA

 

 


35 - A CONVERSA

 

Eram umas três horas da tarde, o sol estava realmente a ponto de fritar um ovo na pedra... é claro que nos locais arborizados não se sentia tanto assim o calor do astro rei, uma vez que a brisa fresca que passava entre as folhagens refrescava todo o redor. Mas Zacarias estava cavalgando pelo descampado, onde nem mesmo um pequeno arbusto ousava crescer pela terra. Tudo porque era local destinado ao pasto para o gado, onde a brachiária dominava todo o cenário. As rêses estavam descansando em um ou outro pé de angico, distantes um do outro pela região. Depois de algum tempo, já deixando o pasto para trás, finalmente Zacarias avistou uma cabana. Era a morada dos Resende, família que trabalhava na plantação de arroz, mas que morava um pouco distante da vila dos colonos por opção própria. A família contava com dez membros, sendo sete rapazes, uma moça e o casal, cabeça da família. Seu Malaquias, patriarca da família, tinha trinta e cinco anos, dona Geralda, mãe da prole, tinha a mesma idade. Mas aparentavam bem mais que isso. Qualquer um que não os conhecesse diria que tinham no mínimo uns cinquenta anos... a vida no campo é dura... seu filho mais velho, o Zelão, tinha 26 anos e o caçula, José Carlos, mais conhecido como Zeca, tinha 15. E era justamente com o Zeca que Zacarias veio conversar. 

Todos conheciam Zacarias na fazenda, e sabiam que, de tempos em tempos, ele fazia uma vistoria por todo o perímetro da fazenda, então ninguém estranhava quando ele chegava em alguma das casas, não importava o horário que fosse. Afinal, era com ele que tinham que tratar qualquer problema que houvesse, pois ele era o encarregado de manter a fazenda funcionando. Sim, embora não gostasse do título, Zacarias era o capataz da fazenda. O senhor Nardi tinha plena confiança em seu empregado, e a amizade vinha desde a mais tenra infância... os dois praticamente cresceram juntos...

Zacarias já estava próximo da cabana de Malaquias, e Zeca o reconheceu. Acenou para o braço direito do patrão. E ficou pensando com seus botões sobre "o que o capataz quer com a gente?" Bem, não esquentou muito a cabeça, pois logo teria sua resposta. Mais alguns minutos no sol a pino e finalmente Zacarias chegou ao destino. Zeca o convidou a desmontar e entrar na casa, o que este aceitou de pronto... Depois de acomodado, e ter tomado um copo de limonada fresca, que dona Geralda fez para ele, começou a conversar sobre amenidades com o rapaz. Perguntou várias coisas. Num dado momento, perguntou ao menino se estaria  preparado para caminhar um pouco, e recebeu um sonoro sim. E lá foram os dois, caminhando pelo sol quente, conversando amenidades. O rapaz olhou curioso para o ombro ferido de Zacarias...

- Dói muito?

- Até que não... já está quase curado... o doutor disse que daqui a mais uns dias eu posso tirar a tipóia...

- Incomoda? 

- Claro, menino. Afinal, já faz mais de um mês que estou com esse braço imobilizado...

- Ainda bem que o tiro só acertou seu ombro, não?...

Zacarias fitou o rapaz em silêncio... tinha que lhe fazer uma pergunta, mas não queria constrangê-lo...

- Sabe por que estou aqui, não sabe?

- Acho que sim... é por causa da nossa última conversa...

- Isso mesmo... conseguiu convencer seus pais?

- Nem em sonho... o senhor conhece minha família...

- Nem o Zelão te ouviu?

- Ele me chamou de doido..

- Entendo...

Silêncio entre os dois, novamente. Caminharam um pouco, até um pé de angico, que estava fora das pastagens... sentaram-se à sombra da árvore...

- Você sabe que sem seu irmão não tem como parar isso, não é?

- Sim, o senhor já me explicou... mas quem disse que aqueles cabeças-duras querem ouvir? 

- Entendo... ví seu rastro lá no pasto... o que foi fazer lá?

- Espero que o senhor não esteja preocupado com isso...

- É claro que estou... e se algum vaqueiro te avistasse? Você sabe que tem pelo menos três cavaleiros fazendo a ronda pelos pastos, dia e noite...

- Bom, o senhor disse que nada podia me ferir...

- Nada, exceto bala de prata... e acontece que todo vaqueiro tem pelo menos uma dessas no tambor de sua arma... imagina o que aconteceria se te acertassem...

- Eu sei, seu Zacarias... eu só queria proteger a propriedade....

- Não faz mais isso, garoto... o Juca viu seus sinais e está meio... preocupado!

- Ele me viu?

- Não, mas viu seus rastros...

Ficaram em silêncio novamente. O que Zacarias estaria pensando naquele momento? Essa era a pergunta que zumbia sem parar pela cabeça de Zeca...

- Menino, você sabe que isso só vai acabar quando seu irmão mais velho aceitar te batizar...

 - O senhor falou isso antes...

- E agora você viu que é verdade...

- O senhor acha que sou uma ameaça?

- Não... por ora, não.

- Então vou virar uma ameaça...

- Espero que não... ficaria muito triste se tivesse que te matar...

Zeca ficou calado... não lhe agradou muito a frase dita por Zacarias...

- Então é isso, rapaz... você tem que convencer seus pais e seu irmão a te batizarem lá na Igreja... só assim você vai escapar dessa maldição...

- E se...

- Esse é o problema... não existe e se... 

- O senhor sabe que a crença de meus pais é outra...

- Eu sei... vocês são protestantes... mas em alguns casos, acho que seus pais deveriam ser maleáveis... você ainda está nos estágios iniciais da licantropia... ainda não oferece perigo para ninguém, a não ser para você mesmo.... o problema vai ser daqui a alguns anos... a gente vai mudando nossa índole... compreende?

- Sim... não queria entender, mas... sim, eu entendo...

- Se você conseguir se manter puro de coração... o que não é fácil nessa vida... seu outro "eu" também será manso. Mas se, por algum motivo, a ira desabrochar em sua alma...

- ... então o lobo ficará violento, é isso?

- Sim, menino, é isso... infelizmente a gente não tem como domar a fera que mora dentro de nós o tempo todo. Ninguém é bonzinho ou malvado todo o tempo... mas, no seu caso, apenas um deslize, e você cai em um caminho sem volta...

- E a minha única solução...

- ... é seu irmão aceitar te batizar na Igreja...

- Estou perdido! Ele nunca vai aceitar! E meus pais também não! Para eles, a salvação da alma está em sua crença e em nenhuma outra! E se descobrem que eu sou...

- Eu sei... é por isso que você tem que convencer seu irmão... e seus pais... que deseja se converter ao catolicismo, sem entrar em detalhes...

Zeca olhou para o companheiro, desanimado... se seu irmão e seus pais descobrissem que ele era... bem, o que ele era, com certeza estaria condenado à morte... se não fosse batizado pelo seu irmão, continuaria com a maldição e poderia realmente se tornar perigoso e, em consequencia, seria condenado à morte... ele não conseguia ver nenhuma saida em sua situação...

Zacarias levantou-se. Estava na hora de partir... estava com pena do rapaz, mas não podia fazer nada por ele... esperava, de coração, que o rapaz conseguisse achar uma saída... mas sabia que não seria fácil. O rapaz queria se converter... mas não bastava apenas ele ir para a Igreja... tinha que convencer seu irmão mais velho a acompanhá-lo. E isso era quase que uma missão impossível para o garoto...


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