16 - MADRUGADA


 

16 - MADRUGADA



Já passava das dez e Juca estava indo para sua casa. Precisou ficar até mais tarde no campo, pois alguns mourões haviam caído e tiveram que ser substituídos. Claro que não ficou sozinho, Chiquinho e Zé Roia, dois companheiros de campanha, o ajudaram a consertar a cerca antes que alguma rês escapasse. Só que eles moravam perto da invernada e ele… bem… sua casinha ficava um pouco distante. Não é que ele não gostasse de caminhar a noite… era seu horário favorito, pois conseguia espairecer simplesmente andando pela mata e sentindo o cheiro da relva. Mas, com tudo que vinha acontecendo na vila… não se sentia muito seguro para caminhar quase duas horas pela campina… pensou um pouco e resolveu parar na vila dos roceiros… era onde Zacarias morava e com certeza não se negaria a lhe dar pouso por essa noite.

A noite estava clara… era lua cheia. Em qualquer outro momento, caminharia até seu lar sem titubear… afinal, dava para ver como se dia fosse. Mas… não, ele realmente não se sentia seguro para fazer essa caminhada. Era melhor evitar para não se arrepender depois. E assim decidiu e assim fez. Depois de alguns minutos lá estava ele, batendo palmas em frente a casa do amigo…

Zacarias ainda não havia se recolhido, assim como sua família. Então, logo acolheu o rapaz, tirando-o do relento. E logo estavam à beira do fogão, conversando sobre amenidades.

A noite passou tranquila e quando a madrugada foi anunciada pelo cantar dos galos, todos já estavam de pé, prontos para mais um dia de labuta. Zacarias saiu um pouco antes, já que iria para a mangueira para ordenhar as vacas… e Juca o acompanhava.

- O que foi aquilo ontem Seu Zacarias?

- Aquilo o que, menino?

- O corpo…

- Era um corpo, ué…

- Eu sei que era um corpo… não foi isso que perguntei...

- Ué… se você sabe que era um corpo, não entendi a pergunta…

- É que escutei umas coisas..

- Só besteira, com certeza…

- Me fez ficar pensando…

- Pensando no que, menino?

- Pensando assim… e se for verdade?

- Mas verdade o que, homem de Deus?…

- Que quem matou aquele infeliz foi a mulher de branco….

- Deixa de besteira, homem…

- Será que é besteira, mesmo?

- E não é? Primeiro… que diabo é isso de “mulher de branco”?

- A assombração…

- Mas que assombração, menino? Isso não existe…

- Ah, não, seu Zacarias… assombração existe, sim…

- Já viu alguma? Eu nunca vi.….

- Agora o senhor é que está falando besteira…

- Você fala de que, exatamente?

- Vai me enganar que não viu os sacis, lá no campo…

- Sacis?! Você está delirando, rapaz…

E com isso, Zacarias deu a conversa por encerrada. Mas Juca não desistia da conversa, e voltou a atacar…

- O senhor sabe que o respeito como a um pai… mas a gente viu, sim, esses diabinhos…

- Menino, a única coisa que vi é que o nosso gado desgarrou e suamos para resgatá-lo… e foi tudo culpa da chuva…

- Então quer dizer que a chuva trançou a crina e o rabo de nossos cavalos…

- Menino, mas que imaginação você tem, hein? E olha que nem deveria estar falando dessas coisas… o sino da igreja ainda não tocou…

- Que sino, seu Zacarias? Que igreja? Por aqui não tem igreja nenhuma… só a capelinha, lá do lado da Casa Grande… e lá nÃo tem sino nenhum…

- Estou falando da Grande Igreja Do Céu, onde Nossa Mãezinha Maria vela por nós…. A gente não deve falar besteiras antes do soar do sino Da Sua Igreja… se você fala uma coisa de ruim e os Anjos disserem “amém”….

Zacarias se persignou. Juca olhou para seu parceiro e, mesmo na penumbra, deu para perceber que este falava sério. Achou por bem deixar a discussão para lá… havia outros assuntos sobre os quais poderia conversar. Só iria cuidar do gado quando o dia clareasse, e faltava um bom quarto de hora para isso acontecer. Portanto, daria uma mão para seu amigo e professor enquanto esperava que o dia amanhecesse.

- Sabia que está para chegar uma nova manada?

- Gado leiteiro?

- Não, de corte… os que estão no pasto já engordaram e foram vendidos… acho que a mesma comitiva que está trazendo o gado vai levar esse…

- Então perdemos a chance de ganhar algum por fora…

- É… o chefe dos boiadeiros é famoso na lida…

- Quem é?

- O Zé Cardoso… vem lá de Andradina…

- Conheço ele… sujeito bom no trato do gado igual ele tá pra nascer…

- Conhece mesmo?

- Sim, Juca… já andei muito por este mundão sem fim… e já toquei muito gado ao lado do Zé Cardoso…

- Ele é bom mesmo, como dizem?

- Ele faz o diabo com o laço… nunca perdeu uma rês em suas campanhas…

- E o grupo que o acompanha?

-Bem, você sabe… esse pessoal trabalha pra quem paga mais… então você não tem uma companhia montada por muito tempo…

- Sei…

- Te digo uma coisa… viver tocando gado por esse estradão é muito bom… mas chega uma hora que a idade chega… e a gente acaba cansando dessa vida…

- Mas o senhor gosta de tocar o gado pela estrada…

- Sim, Juca… mas uma vez ou outra, pra ganhar um dinheirinho a mais e matar a saudade de meus tempos de boiadeiro… agora… viver direto na estrada… essa vida acabou para mim quando conheci a Rosário.

- O senhor está casado a um bom tempo, não?

- Sim… e foi a melhor decisão que tomei na minha vida….

- Como se conheceram?

- Bom, eu era boiadeiro… chefe de comitiva. Um dia eu vim pra essas bandas trazendo uma boiada… e quando cheguei aqui… bom, foi amor à primeira vista… aquela morena me enfeitiçou. Eu de repente não conseguia mais ficar longe dela…. Então, quando o grupo partiu pra Goiás, resolvi ficar por aqui mesmo, ao lado da moreninha…

- E aí?

- Fiquei na lida do gado na fazenda… trabalhei um bom tempo como vaqueiro. Depois, precisavam de um carreiro e acabei ficando… de vez em quando precisam de um boiadeiro e aqui estou eu…

- E não sente saudade?

- Do que?

- De sair pelo mundo em campanha, tocando o berrante…

- Dormindo no meio do mato, sujeito a ser mordido por cobra e outros bichos… não, meu filho… estou melhor assim…

E os dois se calaram, enquanto começavam a ordenha das vacas. E logo o dia clareou, e Juca partiu em direção ao pasto. Teria muito trabalho pela frente, separando as reses que seriam levadas para seu destino final…

Zacarias ficou olhando seu pupilo se afastar, e ficou pensando em como a vida das pessoas era semelhante à vida do gado que pastoreavam… afinal, chegaria o dia em que os patrões decidiriam que era hora de descartar alguns trabalhadores e substituí-los por outros, que dessem mais lucro na lida diária… e ele só pedia a Deus que esse dia demorasse a chegar para ele, pois não sabia fazer outra coisa na vida além daquilo que aprendera desde pequeno… lidar com o gado…

O sol finalmente surgiu no horizonte. Zacarias colocou os galões de leite no carro de boi e começou sua caminhada em direção ao arraial… antes, passou pela casa grande, para deixar o leite dos patrões, e deixaria um pouco em sua casa, também… mas o grosso da produção iria todo para a cooperativa, que ficava perto da estrada de ferro… e lá foi ele, conduzindo sua parelha de bois em direção ao estradão de terra batida...



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