14 - UM DIA NORMAL


 

14 - UM DIA NORMAL


- Mas do que ele morreu, mesmo?

- Já te falei, Duarte... de causas naturais...

- Mas o homem estava sem sangue...

- Deixa de besteira, homem! É claro que ele tinha sangue.

- Ele tava branco que nem papel...

- Olha, pelo que eu ví o homem tinha leucemia...

- E que diabos é isso?

- É uma doença no sangue... a pessoa vai enfraquecendo até que...

- Você quer me convencer que esse sujeito tava doente, por isso estava branco que nem papel...

- Isso. E não estou tentando convencer ninguém. O infeliz estava doente. Ele tinha leucemia. E morreu...

- Mas se ele tava doente, o que fazia de noitão perto da linha do trem?

- E como é que vou saber? Você queria que eu te dissesse a causa da morte, eu te falei. Agora, o que o homem fazia lá naquele lugar quando bateu as botas... já é querer que eu saiba mais do que é possível, não acha?

Duarte coçou a cabeça, não muito convencido das explicações de Alberto. Doença no sangue? Ele nunca tinha ouvido falar disso antes... como é que alguém pode ficar doente no sangue? 

- Você está com uma cara...

- E que cara queria que eu tivesse? Como é que vou explicar pro povo sobre a morte desse sujeito?

- Aliás, já sabe quem é o falecido?

- Taí mais uma coisa que não entendo... ele não é dessas bandas...

- É... acho que o maior mistério real nesse caso é de onde ele veio...

- Se é o que você diz...

E deram a conversa por encerrada, com Alberto assinando o Atestado de Óbito do desconhecido. É claro que ele não mencionou as estranhas marcas que encontrou no pescoço do falecido. Não. Afinal, aquilo poderia ser causado por mil motivos... inclusive, poderia ser picada de algum inseto, já que o corpo passou a noite toda no meio da relva... mas era melhor não colocar mais lenha na fogueira. Afinal, o povo já andava alarmado com tantos boatos que corriam pelo arraial... era um tal de mula sem cabeça, boi-tatá, mulher de branco, papa figo... ô pessoalzinho de imaginação fértil, meu Deus! Mas só imaginavam coisas ruins... porque não podiam ter pelo menos uma vez na vida alguma criatura que ao invés de fazer o mal não espalhasse o bem? Está certo, era tudo fruto da imaginação, mas podiam imaginar coisas boas, não coisa maléficas... enfim...

Duarte foi até a Funerária, para providenciar o féretro do falecido. Iria ser enterrado como desconhecido, já que ninguém nunca o tinha visto na região. Bem, mas não dava para ficar esperando que alguma alma caridosa viesse e revelasse a identidade do morto... ele já estava começando a se decompor... e o cheiro não era nada agradável...

Alberto guardou suas ferramentas de trabalho, se lavou e saiu em direção à pracinha. Precisava de um pouco de ar puro, afinal o lugar onde exercia sua função era um tanto quanto desconfortável... até que era bem arejado, mas não o suficiente para espantar o mal cheiro que os cadáveres exalavam...

Ele sentou-se em um dos bancos e ficou observando o movimento da vila. Os pássaros esvoaçavam pelas árvores, chilreando todos ao mesmo tempo, fazendo uma sinfonia ensurdecedora. As borboletas esvoaçavam de flor em flor, competindo com as abelhas pelo nectar que lhes serviria de comida. Algumas vezes aparecia um beija flor, visitando o jardim e o enfeitando com sua beleza incomparável. E a criançada... corria de um lado para o outro, competindo com os pássaros, para ver quem conseguia fazer um barulho mais ensurdecedor. Sim, era a vida mostrando ao mundo o quanto ela era bela e como deveria ser apreciada, pois era muito curta...

- Perdido no mundo dos sonhos?

Alberto se assustou um pouco. Afinal, estava devaneando e se sentia em outra dimensão, quando Alice, a professora do vilarejo sentou-se ao seu lado...

- Oh, não... estava apenas pensando na vida...

- Mas doutor... a vida não é para ser pensada, e sim vivida...

- Eu sei... mas às vezes, a gente precisa dar uma parada e observar o que acontece ao nosso lado...

- Está falando do corpo encontrado?

- Hein? Oh, não... estou falando que a gente às vezes dá importância demais a coisas que não tem valor e acaba se esquecendo que a vida é só um sopro...

- Nossa, o senhor está um pouco filósofo demais, essa manhã...

- É, às vezes me sinto assim...

- Mas o que aconteceu?

- De certa forma você tem razão... estou assim por causa do homem que encontraram na linha do trem...

- E...?

- A verdade é que não faço a menor ideia da causa de sua morte...

- Falou isso para o delegado?

- Claro que não... para todos os efeitos, ele morreu de morte natural... e tinha leucemia...

- Ele tinha? 

- Sinceramente? Não sei... mas foi a explicação que dei para o delegado. O que mais eu podia dizer?

- A verdade, talvez?

- Mas que verdade, Alice? Se eu mesmo não sei o que aconteceu...

Alice sorriu, compreensiva. Entendia que nem tudo o que seu namorado sabia ou suspeitava podia ser partilhado com todos, principalmente porque as pessoas eram por demais supersticiosas naquela região...

- E agora?

- Agora, o que?

- O que você vai fazer?

-  Nesse momento? Nada. Daqui a pouco, quando me esquecer das coisa que vejo no necrotério, vou almoçar... vem comigo?

- Claro... só vou dar aulas daqui a duas horas... o pessoal da manhã já foi dispensado...

- Até que esse ano você conseguiu reunir uma turminha grande, não é mesmo? 

- Sessenta alunos? Bem, já tive bem menos....

E continuaram a conversar sobre amenidades, até que a fome apertou e seguiram para a pensão da dona Adélia, onde serviam a melhor refeição de toda a vila... afinal, era a única pensão que existia por ali, mesmo...

 

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