26 - O DELEGADO


 

26 - O DELEGADO

- Era tudo o que eu não precisava...

Duarte, olhando desanimado para o cavaleiro que está apeando em frente a delegacia. Alto, porte atlético, um bigode fino, ar severo. Sua indumentária era toda negra... inclusive as luvas que usava. Aquele senhor entrou  no recinto, segurando seu chapéu na mão. Fitou Duarte nos olhos, e com voz firme o cumprimentou, explicando a que veio.

- Sou o Delegado Vicente Lia, enviado do comando da Capital... o senhor sabe porque estou aqui, não?

Duarte fitou o teto da delegacia e deu um grande suspiro... claro que ele sabia porque haviam enviado aquele delegado para sua cidade... os crimes misteriosos só aumentaram nos últimos tempos... depois que enterraram o estranho semi morto, mais três cadáveres apareceram no arraial. Dois sem sangue e um sem os órgãos internos. De nada adiantou o doutor Alberto enviar laudos positivos para sua chefia... na verdade, isso quase custou seu cargo quando veio à tona que ele não registrava as "causa mortis" corretamente... Foi preciso muita conversa, tanto dele quanto do delegado, para que a chefia imediata do médico não o exonerasse do cargo. E foi aí que enviaram esse delegado especial. Afinal, se tinha algo de errado na localidade, era preciso investigar. E para a chefia lá na Capital, parecia que isso não estava sendo feito... e se estava, o serviço era muito mal feito, já que vários crimes ocorreram pela localidade e os agentes da lei não tinham a menor pista do ocorrido. 

- O senhor sabe que estamos investigando esses casos já a alguns meses... não sabe?

Duarte deu um longo suspiro. Claro que sabia. Afinal, o serviço secreto do Governo investigava qualquer coisa fora do anormal que ocorresse por aquele sertão sem fim. E era justamente por isso que ele e o doutor Alberto tentavam dourar a pílula em seus relatórios... queriam distancia dos investigadores do Governo Central...

- Doutor Duarte, o senhor teve quase vinte casos inexplicáveis aqui em sua jurisdição... e não relatou nenhum deles... por quê?

Duarte continuava de pé, pensativo. O que iria responder para esse almofadinha da Cidade Grande? Que os casos eram estranhos demais para constar em relatório? Que ele não tinha a menor ideia sobre como falar dos casos ocorridos? Como explicar uma coisa que o senso comum afirmava ser  apenas crendice popular, sem nenhum embasamento na vida real? Como explicar, por exemplo, um morto que não estava tão morto, assim? Quem iria acreditar em um relatório desses? Se ele colocasse isso em seus registros oficiais, com certeza teria sido destituído a um bom tempo... se bem que, ao que tudo estava indicando no momento, sua exoneração não tardava...

- Eu sei o que o senhor está pensando, Doutor Duarte... pode ficar tranquilo, eu não vim aqui substitui-lo... na verdade, a minha missão é te ajudar a resolver essa encrenca na qual estamos todos envolvidos! Terminado esse caso, eu vou partir... afinal, não é só a sua cidade que tem casos misteriosos para resolver...

Duarte olhou para o homem, intrigado... como assim, ele não viera ali para substituí-lo? Pelo andar da carruagem, Duarte já se via na fila dos desempregados, contando com a boa vontade de algum fazendeiro que o empregasse como vaqueiro ou jagunço... mais provável a segunda opção que a primeira, já que ele era mais familiarizado com as armas que com o gado... bem, de qualquer forma, saber que seu emprego não estava em risco... ainda... lhe trouxe um certo alívio. Era melhor colaborar com o sujeito à sua frente, e torcer para que conseguissem resolver o problema o mais rápido possível, afinal, quanto mais rápido resolvessem o caso, mais rápido aquele delegado iria embora...

- Ainda que mal lhe pergunte, doutor... porque o senhor veio aqui para Berizar?...

- O senhor já deu uma olhada nos casos ocorridos na região, Doutor Duarte?

Duarte coçou a cabeça... não, nunca tinha posto reparo nos casos fora de sua cidadezinha... já tinha trabalho demais tentando manter a ordem em toda a sua jurisdição com apenas dois ajudantes... onde iria arranjar tempo para ficar cuidando de casos de outros?

- Bom, como tenho certeza de que o senhor não se deu a esse trabalho, vou lhe explicar... a maioria dos casos ocorreram em volta de sua cidade. Foram vários locais... mas sempre em volta de Berizar... então, nada mais lógico que começar a investigação por aqui, não acha?

Duarte suspirou, desanimado... não, ele não achava nada lógico investigar o que quer que fosse em seu arraial... investigar o que? Histórias de assombração contadas pelos matutos daquele rincão? Boi tatá, mula sem cabeça, mulher de branco... tudo invenção daquele povo supersticioso...

- Doutor, eu...

- Olha, Doutor Duarte... eu sei que as coisas parecem meio estranhas... mas se tem uma coisa que aprendi durante minhas idas e vindas por esse sertão é que existem mais coisas caminhando por esse mundão de Deus do que a gente pode sonhar... já vi muita coisa que não dava prá explicar... mas que estava acontecendo diante de meus olhos. Então, quando a gente está tentando resolver uma situação, depois de descartar todas as soluções lógicas, tem que investigar as ilógicas, também... 

- Eu...

- Entenda uma coisa... por trás de uma história da carochinha sempre tem algum fundo de verdade. Eu sei que correm boatos de pelo menos três tipos de monstros rondando Berizar.... O Papafigo, A mulher de branco e um terceiro, que ninguém sabe ainda o que é...  são historinhas prá boi dormir?  É provável... mas os crimes estão acontecendo, então a gente tem que investigar isso também, já que a linha de resolução lógica não nos leva a lugar nenhum...

- Tudo bem, doutor... a gente vai investigar isso... está tudo muito bom. Mas por onde a gente começa?

- Que tal começar conversando com os curas e os benzedores da região? Se tem algum que pode responder algumas de nossas dúvidas, com certeza é esse pessoal...

- O senhor só pode estar brincando...

- Não, estou falando sério... quando o possível se torna impossível, a gente torce para que impossível seja o possível...

- Agora que não entendi nada...

- Simples, delegado... a gente vai investigar o sobrenatural... é a única coisa que nos resta... ou seja, não temos escolha!

Duarte concordou com a cabeça, com um olhar desanimado... agora não ia mais apartar briga de cachaceiro no final de semana... ia caçar lobisomens e outros bichos... se falassem pra ele quando assumiu seu cargo que um dia iria correr atrás de seres do outro mundo, simplesmente iria rir da cara de quem falasse isso... e agora...

- Alguma dúvida, delegado?

- Não, doutor... tudo certo...

- Então vamos...

- Prá onde?

- Primeiro, para a Igreja... precisamos conversar com o cura...

E os dois ganharam a rua, deixando um ajudante cuidando da delegacia. Duarte ainda se sentia meio constrangido com a situação, mas como sempre dizia... "o que não tem remédio, remediado está..."  

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