A TAÇA DE CRISTAL Capítulo Sessenta e Três


 A TAÇA DE CRISTAL

Capítulo Sessenta e Três


- Mas para que eu vou querer uma pistola?!

- Nunca se sabe, Ricardo... é sempre melhor ter e não precisar do que precisar e não ter...

- Olha, eu realmente não gosto de armas...

- Por que?

- Porque... porque eu não gosto... é isso! Sou um cara pacífico...

- Eu também sou, eu também sou! Não gosto de confusões, não discuto com ninguém... dou razão para quem estiver certo...

- Sei...

- Mas ainda assim estou sempre com o meu "anjo da guarda" no meu coldre...

- Tudo bem... mas me diga uma coisa... eu compro sua arma... não posso registrar, não é mesmo?

- O que é isso, o que é isso?  Essa é uma arma "quente", vem com toda a documentação legal... é claro que você poderá registrá-la... só não vejo o motivo de fazer isso... se precisar usá-la e ela não tiver registro, ninguém vai chegar até você...

- Não sei, não...

- O que é que você não sabe?...

- E se os "homens" me pegarem com ela?

- Bem, você não vai dar bandeira, não é? É claro que se te pegarem com a arma você pode acabar preso... 

- Então... é essa a situação que não me anima muito...

- Toma... segura ela um pouco...

E Ricardo segura a pistola em suas mãos... começa a examiná-la atentamente... está tentado a ficar com ela. Na verdade, "Gato", o rapaz com quem conversava  no momento havia sido indicado por um colega de trabalho. A muito que o rapaz desejava adquirir uma arma e soube, através desse colega, que "Gato" vendia todo tipo de armas por debaixo do pano... e, se a pessoa assim o desejasse, também vendia armas legalizadas, mas não era esse o seu foco... sim, Ricardo estava propenso a fechar o negócio...

- E a munição?

- Te vendo duas caixas por um preço módico...

- Tá... e depois?

- É só me procurar quando precisar... você tem o meu contato...

- Mais uma coisa... e como faço para treinar?

- Meu amigo, isso é fácil... basta se associar a um clube de tiro...

Não preciso dizer que Ricardo fechou o negócio, não é mesmo? Nem ele saberia dizer porque resolveu comprar a arma... mas comprou. Pagou em dinheiro vivo para o rapaz, guardou a caixa com a arma e as munições no fundo de sua bolsa, onde estavam suas coisas do trabalho e voltou sua atenção para o cobrador que estava chegando com o relatório em mãos... era hora de buscar "a boa", a ultima viagem do dia... esperou seu parceiro se ajeitar em seu assento na catraca e, suavemente, levou o bruto até o ponto, onde os passageiros aguardavam o momento de embarque. "Gato" desapareceu no meio da multidão... e Ricardo ficou admirado com a rapidez com que o vendedor sumiu... era como se fosse um fantasma... ou, considerando seu tipo de mercadorias, um demônio. Ricardo sabia que havia feito besteira, mas por algum motivo que não conseguia entender, sentia um misto de prazer e agonia... não era aquele tipo de prazer que te deixa alegre, feliz... ele mesmo não conseguia explicar como se sentia nesse momento. Sim, ele desejava possuir a arma e agora a tinha em seu poder... mas... e agora?

Por volta de nove horas da noite Ricardo chegou em sua casa. Nos últimos tempos ela lhe dava agonia... ele se sentia muito solitário, e desejava ardentemente uma companhia com quem conversar... mas somente a solidão o esperava entre aquelas paredes. Cada detalhe da casa o fazia recordar um momento do passado... momentos alegres e felizes, momentos nem tão alegres assim...  e com tudo isso, ia tocando o barco...sabia que a situação que estava vivendo era única e exclusivamente sua culpa... mas quando externava seus pensamentos, sempre culpava Cecília... ela era a razão de sua infelicidade... e quando seguia essa linha de pensamento, somente desejos sombrios dominavam sua mente... misto de amor e ódio, se isso é possível, ele queria ter sua esposa de volta... para poder dominá-la completamente... 

Sua primeira providencia, ao chegar em casa naquela noite, foi arrumar um local para guardar sua aquisição... não pretendia andar com ela. Na verdade, pensando friamente, ele não sabia a real motivação para a compra da arma... nunca gostou desse tipo de equipamento. E, no entanto... vai entender... escolheu uma das gavetas de seu guarda roupas, envolveu a caixa em um cobertor e a guardou bem no fundo. Não pretendia mexer com a arma tão cedo. Pensar em disparar com a pistola não o deixava assim tão excitado. Sabe aquele tipo de compra feito por impulso? Bem, podemos dizer que, embora ele tenha procurado o vendedor, e a ideia de aquisição da arma tenha sido maturada por dias,  não era seu real desejo comprá-la... mas, no final...

Depois de tomar seu banho e se vestir, foi preparar alguma coisa para comer. A panela elétrica era sua salvação... o arroz estava no ponto certo. Deu uma olhada na geladeira e decidiu que dois ovos fritos para acompanhar o arroz seria a melhor escolha. Ligou a TV e enquanto assistia o jornal da noite, se inteirando das ultimas noticias do mundo, devorou seu jantar. Tomou uma xícara de café, lavou a louça e os talheres, escovou os dentes e foi para a cama. E logo mergulhou no mundo dos sonhos...

Ricardo estava jogando bola com seus coleguinhas de rua. Driblou um, driblou dois, mas quando chegou no terceiro, levou uma rasteira, caindo de boca no chão, enchendo a boca de terra e poeira. A garotada foi em peso acudi-lo, e o garoto responsável por sua queda ficou desesperado, uma vez que não pensara que o coleguinha se machucaria tanto quanto parecia ter-se machucado. O joelho ralado, a boca sangrando... sim, a queda foi feia. Mas poderia ter sido pior... a poucos centímetros de sua queda, uma pedra com a ponta saliente... se tivesse caído sobre ela... bem, era melhor nem imaginar o que poderia ter acontecido...

Dona Olga levou o garoto para o hospital... fora algumas luxações e o rosto arrebentado pela queda, nada mais grave acontecera... e o garoto já estava pensando na revanche, no próximo jogo do qual participaria...

E assim passou a noite toda, sonhando com o tempo de criança, onde as coisas eram bem mais simples e era possível sonhar com um futuro lindo e maravilhoso... onde a mão de sua mãe estava sempre estendida para ajudá-lo a se levantar quando a vida o derrubava... sim, seu tempo de criança foi simplesmente maravilhoso... quando foi que a vida começou a desandar?


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