A TAÇA DE CRISTAL - Capítulo quatorze
A TAÇA DE CRISTAL
Capítulo quatorze
Enquanto o ônibus estava em movimento, Roseli
tentava se equilibrar dentro dele. Estava bem cheio, como era normal para o
horário.Ela teria que pegar mais um ônibus ainda, depois que chegasse no ponto
final deste. Mas como pegaria o outro no terminal, as chances de conseguir se
sentar eram boas. De qualquer forma, ela não estava preocupada com isso no
momento. Na verdade, não conseguia parar
de pensar na conversa que tivera com Ricardo. Como ele pudera brigar com sua
esposa? Está certo, seria bom se ele terminasse seu relacionamento com a
Cecília e fosse morar com ela, mas por nada no mundo ela desejaria que os dois
chegassem às vias de fato. Mesmo porque, se ele brigava com a esposa atual, o
que o impediria se houvesse alguma discordancia entre os dois, de partir para a
violência contra ela? Não era uma idéia muito agradável… bem, de uma coisa ela tinha certeza… se
chegassem algum dia a essa situação, seria as suas duas grandes brigas na vida
do casal… a primeira e a ultima. Sim, porque se tinha uma coisa que ela não
aceitaria seria uma agressão por parte de seu amante. Com certeza, ela faria a
mesma coisa que Cecília…mas… será que ele estava falando a verdade sobre o
ocorrido? E por que levou tanto tampo assim para comunicar o desaparecimento
dela às autoridades? Não era totalmente descabido desconfiar de sua versão
sobre o sumiço da moça…
Estava tão compenetrada em seus pensamentos que
nem percebeu que já havia chegado no final do percurso. Desceu rapidamente e
dirigiu-se para a plataforma onde embarcaria no próximo ônibus. Respirou
aliviada… o carro estava quase vazio, com vários assentos desocupados. Escolheu
um próximo à porta, porque sabia que durante o trajeto ele também ficaria
lotado, e se não estivesse em um bom lugar, teria problemas na hora de
desembarcar do mesmo. Ficou observando a paisagem pela janela, encantada em como o mundo parecia
voar a sua volta. Enquanto saiam do terminal tudo era absolutamente uniforme.
Mas conforme ia se afastando do ponto inicial, a paisagem ia se modificando. E
algumas vezes a visão era linda, em outras era simplesmente monótona…e assim
foi seguindo, sempre absorta em seus pensamentos. Depois de mais ou menos uma
hora de viagem, chegou ao seu destino. Ela trabalhava em uma lavanderia industrial,
como passadeira. E, embora não gostasse tanto assim de seu serviço, o pagamento
era razoável. E por isso já estava com eles a um bom par de tempo. Do ponto do
ônibus até a emprêsa, ainda tinha que caminhar alguns minutos. As ruas eram bem
movimentadas, então não se preocupava muito com a caminhada. Até gostava, pois
acabava fazendo exercícios sem querer… não precisava entrar em uma academia
para manter-se em forma. O ferro com o qual trabalhava tinha mais ou menos uns
cinco quilos. Então, o movimento de vai e vem que fazia para passar as roupas
era como se estivesse puxando ferro, por exemplo. Quando trabalhava com o
manequim de certa forma estava em um banho turco, tão quente que ficava o
local…
Roseli começou na empresa como ajudante, na
seção de identificação da mercadoria do cliente. Era um serviço relativamente
fácil, mas que exigia muita atenção. Afinal, se não identificasse corretamente
as peças que recebiam, com certeza os clientes perderiam suas roupas, pois
simplesmente era impossível descobrir a quem pertencia tal peça… aliás,
dizia-se que o proprietário da lavanderia, quando começara o negócio, perdeu um
grande cliente potencial justamente por
cometer esse erro… por inexperiencia, acabou misturando as roupas dos clientes
e amargou com um prejuízo que quase matou seu empreendimento que nascia… ele
mesmo contava essa história para seus funcionários, para que eles entendessem
que ali nenhum serviço poderia ser encarado como não essencial. Cada posição
dentro da empresa era importante para que ela crescesse, do vigia na porta da
loja até o entregador das peças quando estivessem prontas. Então, ele pedia a
todos que ficassem atentos ao menor erro que pudesse acontecer… e no final do
mês, tentava premiar os melhores funcionários, aqueles que haviam se destacado
em seu trabalho durante o mês todo, e não importava qual era a função
desempenhada, o que contava era sua dedicação...
Sim, a emprêsa valorizava seus funcionários. Na
medida do possível, procurava pagar um salário que refletisse essa preocupação
da diretoria. E isso era o principal motivo de Roseli estar na empresa já a
tanto tempo. Sua dedicação ao trabalho lhe rendeu várias promoções, e o próximo
passo seria como encarregada de algum dos departamentos da lavanderia. E ela
tinha certeza de que conseguiria. Estava trabalhando para isso.
Bem, mas nesse dia ela realmente não estava
conseguindo raciocinar direito. Seu pensamento se encontrava bem longe dali, e
só seu corpo estava presente. Estava tão desligada da vida real, que por várias
vezes seus colegas tentavam conversar com ela e tudo que conseguiam era um
olhar de peixe morto de volta, tão absorta que estava. Seus pensamentos voaram até sua pequena
Letícia, que aquela hora estava na creche. Ela não gostava de deixar a menina
lá, mas não tinha muita opção, já que precisava trabalhar para sustentar as
duas e a muito morava sózinha… esse talvez fosse o motivo principal dela
desejar que Ricardo largasse de uma vez a esposa e fosse morar com ela. Afinal,
seria muito bom tem alguém com quem partilhar sua vida. Por todas as horas, e
não por alguns minutos roubados da vida de outra… está bem, quando engataram
seu romance ela sabia que o namorado era casado, ele nunca tentou esconder esse
fato dela. E quando passaram a ter um contato mais íntimo, ela alertou-a várias
vezes para se cuidar, pois não poderia dar-lhe suporte caso viesse a
engravidar. Acabou acontecendo… ela não
podia reclamar, pois ele registrou a menina como sua filha… está certo, era
obrigação moral dele registrar a menina, mas quantos não fogem dessa obrigação?
Quase todos os finais de semana que estava de
folga, ele procurava ficar um tempo com a menina. Roseli via nos olhos dele o
amor que tinha pela criança. Ela sabia que, se ele não havia assumido a criança
na frente de todos, era porque não tinha coragem de contar toda a verdade para
a esposa. Algumas vêzes ela até teve vontade de fazer isso… chegou mesmo a
passar em frente da casa do rapaz, mas quando via Cecília, perdia a coragem. O
que não desejava para si não poderia proporcionar para outra, pensou. E assim
acabou por aceitar a situação, se contentando com o tempo que Ricardo dispunha
para ela e a criança…
Porque Roseli aceitava essa situação? Por mais
que tentasse entender, não conseguia… está certo, Ricardo era bonito… mas não
era nenhum Apolo. Também não tinha posses, o que descartava estar com ele por
interesse. Mesmo porque, como motorista de ônibus, seu salário não era tão bom
assim… e sua carga horária de trabalho… se bem que era graças a isso que podiam
se encontrar sem que a esposa dele desconfiasse. Afinal, se ele demorasse para
ir para casa, era porque tivera que cobrir o horário do colega que faltou ou
tinha que cobrir a linha onde um dos carros de escala quebrou… desculpas tinha
de sobra, para justificar suas ausências…
O que a chateava era o fato do pai de sua filha
adquirir o hábito de beber nos últimos tempos. Começou devagar, um trago depois
do serviço… até que chegou ao ponto de se embriagar todos os dias. É claro que
ele não ia para a sua casa, e sim para a dele… mas o fato era que ele estava
exagerando na bebida. E ela o alertara por várias vêzes. Mas ele a escutava? É
claro que não… e ela começou a sentir pena de sua rival no amor…
Bem, ela nunca sonhara que os dois brigavam
tanto quanto ele lhe contou. Está certo, ela sabia que as coisas não iam bem
entre os dois, mas não pensava que estavam assim tão… como poderiamos dizer… na
corda bamba. E, se a situação entre ele e Cecília estava no ponto em que
contou, era hora dela rever com muito carinho a sua situação ao lado dele. Pois
se ele não conseguia se controlar com sua esposa, que garantia tinha de que com
ela seria diferente? E ela não tinha nenhuma vocação para ser “Amélia” de quem
quer que fosse…
Alguém a chamou mais vigorosamente, e a trouxe
para o mundo dos mortais. Era Martinha, sua amiga. Ela a chamava para irem
almoçar, era tempo de parar por uma hora, pelo menos. A amiga perguntou o que
estava acontecendo, porque ela ficara tão calada naquela manhã, justo ela que
era tão faladeira… Roseli desconversou. Achou melhor não trazer problemas
pessoais para dentro da firma… mesmo que esses problemas não fossem seus
diretamente, é claro que eles a atingiam, então era melhor guardar tudo para si
e esperar os próximos desdobramentos da situação… Resolveu falar sobre outras
coisas, como os planos que tinha para suas férias, que coincidiriam com as
férias da nenê na creche… ela pretendia ir visitar seus pais, pois já fazia um
bom tempo que não os via. E assim
poderia apresentar sua filha para eles. Fazia já um bom tempo que ela viera
para a cidade, deixando o lar de seus pais. Sempre foi uma pessoa inquieta, e
quando seus pais começaram a discutir com ela por querer ser independente
demais (não sei bem o que seria ser independente demais, mas…), resolveu juntar
suas coisas e partir para longe, em busca de seus sonhos. É claro que o começo
foi difícil, não conhecia ninguém e a vida é cruel com aqueles que não tem
alguém a lhe dar apoio. Mas a crueldade
da vida nada mais é do que experimentar a pessoa para saber de que aço ela foi
forjada, e então a recompensa conforme sua capacidade… e Roseli conseguiu, a
duras penas, se estabelecer e conseguiu um emprego… a lavanderia onde
trabalhava até os dias atuais. Mas isso não significava que a saudade do lar de
seus pais não a atacava, de vez em quando… não só do lar mas dos dois “velhos”.
Embora brigassem muito, ela gostava de seus pais. Só não sabia demonstrar, o
que, aliás, é o problema da maioria das pessoas. Escondem tanto seus
sentimentos que acabam não sabendo demonstrar o quanto gostam de alguém, até
que seja tarde demais… Seus pais eram lavradores, trabalharam na roça desde
crianças, e queriam que seus filhos permanecessem no campo. Mas Roseli tinha
outras idéias fervilhando na cabeça. Trabalhar a terra dos outros e ficar sempre
na pindaíba? Não, mil vêzes não. Ela tinha sonhos, queria estudar, ser alguém
importante na vida. E ali onde moravam, uma cidadezinha perdida no interior de
São Paulo, ela jamais realizaria seu sonho, jamais subiria da condição de
“peão” da fazenda… o máximo que ela poderia conseguir era se tornar uma
zeladora de alguma fazenda, se tivesse sorte. Mas não era isso que desejava
para sua vida…
Esse ano, se tudo desse certo, ela iria rever
seus pais. Era seu plano e, se nada desse errado, iria conclui-lo. Levaria a
pequena Leticia para conhecer seus avós… porque os pais de seu pai,
dificilmente Leticia conheceria. Ricardo, mesmo dando toda a atenção do mundo
para a menina, jamais cogitou em apresenta-la aos seus pais… para que não
falassem sobre ela para Cecília, de quem gostavam muito. Sim, Roseli sabia que
era uma intrusa na vida do casal. Mas… ela não havia pedido isso, tudo
aconteceu de repente… como se fosse uma brincadeira sem graça. Simplesmente
aconteceu… e agora ela não sabia como romper esse laço que, se em alguns
momentos era maravilhoso, em outros era sufocante ao extremo. As vezes desejava
simplesmente terminar tudo e partir para outra, reiniciar sua vida. Mas as
coisas não eram tão simples, assim. Ela era apaixonada por Ricardo e, por mais
que quisesse, não conseguia imaginar sua vida sem ele… e agora… o que iria
acontecer? Não sabia, mas tinha certeza de que tudo iria mudar, de agora em
diante…
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