A TAÇA DE CRISTAL - Capítulo treze


 

A Taça de Cristal

Capítulo treze

 

Ricardo compareceu na garagem na hora costumeira… cinco e meia da manhã. Mas, quando bateu os olhos no quadro negro exposto na parede da sala, gelou. Seu registro estava anotado ali. E isso queria dizer, simplesmente, que ele estava “na pedra”, como costumavam dizer… suspenso, o verdadeiro termo para a situação. O pânico tomou conta de seu ser. Ele não podia ser suspenso. Na verdade, não poderia nem ter faltado ao serviço, pois cada centavo de seu salário contava. Afinal, ele tinha que prover Letícia, sua filha. É claro que Roseli nunca o cobrou de nada, mas ele sabia de suas obrigações, e não deixava faltar nada a pequena. Ele o fazia porque gostava da criança, não porque a lei o obrigasse a isso.

O chefe de tráfego só chegaria às nove da manhã, então não resolveria nada perder seu tempo ali… voltaria mais tarde, para tentar se explicar ao chefe. Quem sabe se, relatando tudo que lhe acontecera, teria sua suspensão cancelada? Não faria nenhum mal conversar, muito pelo contrário... 

Letícia iria para a creche, então não resolveria nada ele ir visitá-la aquela hora. Roseli estaria se dirigindo ao trabalho, naquele horário. Ele realmente não tinha muito o que fazer… depois de pensar muito, resolveu acompanhar Roseli até seu trabalho. Pelo menos a hora passaria mais rápido…

Roseli estava no ponto de sempre, esperando o ônibus para dirigir-se ao seu local de trabalho. Ficou realmente surpresa ao ver o “namorido ausente” parar ao seu lado. Olhou para ele, sem compreender o porque de Ricardo estar ali. Afinal, naquele horário ele deveria estar no comando de algum ônibus… mas de qualquer forma ficou contente em ve-lo, afinal de contas já fazia quase uma semana que não se encontravam. Ela sabia que seu “namorado” era casado e que não resolveria nada pressioná-lo para o que quer que fosse. Além disso, na medida do possível ele estava sempre presente, e era um pai muito amoroso. Sua pequenina era muito agarrada a ele…

- O que aconteceu? Está de folga, hoje?

- Mais ou menos…

- Mais ou menos? Como assim? Ou você está de folga ou não está…

- Bem, é que eu faltei quatro dias seguidos no trabalho, e hoje, quando voltei…

- Faltou quatro dias? O que aconteceu?

- A Cecília…

- O que aconteceu com a megera?

- Não fale assim dela…

- Mas você vive chamando ela assim…

- Eu posso… você não.

- Ué… porque você pode e eu não?

Ricardo suspirou… respirou fundo e contou até dez. Era melhor contar de uma vez o que tinha acontecido, senão era capaz de acabar brigando com Roseli, também. E não estava querendo brigar com ninguém no momento…

- Cecília sumiu…

- Sério? Meus desejos se realizaram! Agora podemos morar juntos, finalmente…

- Roseli, estou falando sério!

- Ué, e por acaso eu pareço estar brincando?...

- Mulher, a coisa é grave, sabia?

- Então explique, ué…

Ricardo respirou fundo. Não podia discordar dela, afinal se não se explicasse, como é que ela poderia entender o que estava se passando? Pensou em como contar tudo desde o começo, mas como iria dizer que era suspeito pelo desaparecimento de sua esposa? Ficou temeroso, não sabia qual seria a reação dela… de qualquer forma, ele tinha vindo ali para conversar um pouco, precisava ter alguém para o escutar, precisava de um ombro amigo para desafogar as mágoas, e quem melhor que sua amante para o ouvir? Ele a abraçou, e começou a contar toda a história para ela, desde o começo, com suas bebedeiras, as discussões que nasceram graças a elas, até que culminou com a agressão física que Cecília sofreu em suas mãos.Quando ela ouviu sobre a última briga do casal, desvencilhou-se do abraço, olhou-o diretamente nos olhos, com ar de reprovação. O olhar gelado como aço que a moça lhe dirigiu deixou-o sem jeito… ficou calado por alguns segundos. Então, continuou a história, culminando com o registro do desaparecimento da esposa na delegacia. Roseli permaneceu séria. Então, fitando diretamente seus olhos, perguntou…

- E você levou quase três dias para denunciar o desaparecimento de sua esposa?

- Eu não sabia o que fazer… estava perdido…

- Perdido… perdido você vai ficar, se por acaso a encontrarem morta. Já pensou nisso? Você será o principal suspeito se isso acontecer… reze,  e muito, para que ela esteja sã e salva…

- Tenho certeza de que está…

- E o que te dá essa certeza?

- Ela levou boa parte de suas roupas. Sua conta bancária está sendo movimentada on line. Alem disso, ela pediu demissão de seu emprego…

- E você acha que isso garante a integridade física dela?

- Ué, é claro… se não, porque ela estaria usando seu dinheiro no dia a dia?

- Quantos casos a gente não ouve de pessoas que desaparecem, levam roupas, gastam dinheiro… e a polícia acaba descobrindo que já estavam mortas a um bom tempo, que seus assassinos movimentavam suas contas só para não levantar suspeitas…

Ricardo ficou pálido. Não havia pensado nessa possibilidade. Sim, Cecília tinha que estar viva. Deus não podia permitir que tivesse acontecido nada de mal para ela. Afinal, por mais que não parecesse, ela era o amor de sua vida, e ele não desejava nada de mal para sua esposa. Ela tinha que estar bem…

- Olha, Ricardo, se eu fosse você, tentaria descobrir onde ela se encontra. E o mais rápido possível. Imagine se resolvem decretar uma prisão preventiva para você…

- E por que fariam isso? Eu não fiz nada…

- Isso é o que você diz… mas pode provar?

- Que eu saiba, o ônus da prova cabe ao acusador, não ao acusado…

- E você está sendo acusado…

- Não, claro que não… já te disse, não fiz nada….

Roseli tornou a fitá-lo no rosto. E notou o quanto ele estava desanimado. Sentiu pena de seu namorado. Mas não poderia fazer nada por ele. E, pensando bem, enquanto a situação dele não fosse esclarecida, talvez fosse melhor não se verem mais, falou para o rapaz…

- Mas… e a Letícia?

- Acho melhor você se afastar de nós duas até a sua situação se resolver. Eu não quero ser envolvida nessa história e não quero a menina metida nisso. Por isso acho melhor você se afastar da gente, ao menos por enquanto…

- Está falando sério?

- Nunca falei tão sério em minha vida…

O ônibus que Roseli pegava surgiu na esquina. Ela estendeu o braço, fazendo sinal para que ele parasse. Olhou Ricardo mais uma vez, depois embarcou. Não se voltou mais para olhar o amante. Ricardo ficou parado, com o olhar perdido no horizonte. Não podia acreditar que ela o havia proibido de visitar sua filha. Aquela garotinha era seu maior tesouro. E estava proibido de vê-la. O que faria de sua vida agora? Não sabia, sua vida havia perdido completamente o rumo…

O relógio acusa dez horas da manhã quando seu Alberto, o Chefe de Tráfego da empresa o recebeu em sua sala. Seu Alberto era uma pessoa extremamente simpática. Procurava ser  justo com todos. Mas era duro, quando precisava ser.  Dizia sempre que cada um paga por seus atos, mas só na medida necessária. Não gostava de punir seus funcionários, e só o fazia em ultimo caso. Ricardo nunca fora chamado no escritório para o que quer que fosse, já que era um dos funcionarios exemplares do grupo.  Mas para tudo tem uma primeira vez…

- E então, o que aconteceu? Você faltou quase uma semana…

- Problemas familiares, chefe… minha esposa…

- E o que tem a sua esposa, com as suas faltas? Ela está doente?

- Não, acho que não… ela desapareceu.

Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Ricardo abaixou a cabeça, pensativo. Depois de alguns minutos, o chefe dirigiu-se ao rapaz…

- E você não sabe onde ela poderia estar…

- Não, chefe. Estes dias tentei descobrir para onde ela foi, mas parece que a terra a engoliu. Não consegui a menor pista de seu paradeiro…

- Você poderia ter ligado. Evitaria todo esse contratempo.

- Não tive cabeça para isso, chefe. Não conseguia pensar direito…

- E agora, o que quer que eu faça? Quer uns dias de licença, para tentar achar sua esposa?

Ricardo ficou pensativo. Se conseguisse alguns dias de licença, talvez descobrisse o que havia acontecido com sua esposa. E para ele seria importante descobrir onde ela estava, até para se livrar das suspeitas da polícia, que poderia complicar sua vida profissional… e também estava proibido de ver sua filha, e isso era demais para ele.

- O senhor poderia me conceder alguns dias?

- Te dou uma semana… e abono suas faltas. Assim você terá quinze dias de licença. Que poderá compensar aos poucos, quando eu precisar de um motorista a mais em alguma linha. Aceita?

Quinze dias para compensar mais tarde? Era exatamente o que poderia ajudá-lo no momento… Claro que iria perder algumas horas extras, mas pelo menos teria alguns dias para procurar por sua esposa. Não podia desperdiçar essa chance…

- Aceito, chefe. Pode contar comigo, quando precisar…

Alberto pegou o telefone, fez uma ligação, e dispensou o rapaz. Estava tudo resolvido por ora. Só teria que retornar à garagem dali a sete dias, em seu horário normal… Não podia pedir mais do que isso…

Sentado no sofá, em sua sala, Ricardo começou a pensar. E por mais que tentasse, não conseguia imaginar para onde Cecília teria ido. Nos lugares mais óbvios, ele já verificara. E não logrou sucesso. Portanto, só podia supor que ela resolveu ir para algum lugar onde jamais pensariam em procurá-la… e caberia a ele tentar descobrir o mais rápido possível o seu destino. Não era uma tarefa fácil…

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