A TAÇA DE CRISTAL Capítulo Dezoito
Capítulo Dezoito
Janete estava preocupada. Primeiro, a noticia do desaparecimento de
Cecília. Depois, a gravidez antes da hora de Estela. O que mais faltava
acontecer? Ainda bem que pelo menos Helena era centrada… está certo que fazia
um bom tempo que elas não se falavam, mas pelo menos sabia que sua filha mais
velha pensava muito bem antes de agir… e dificilmente costumava enfiar os pés
pelas mãos. Janete terminava de preparar o jantar, quando o telefone
tocou.”Pronto, mais noticia ruim”, pensou ela. Seu primeiro ímpeto foi de não
atender, mas então resolveu ver o que era. Vai que fosse alguma coisa realmente
importante…
- Pronto?
- Oi, mamãe… estou ligando pra dizer que tenho noticias da Cecília…
- E então?...
- Ela está bem… veio pra cidade hoje, mas já voltou para o interior….
- Conversou com ela?
- Não… mas ela me enviou uma mensagem… está trabalhando em uma loja em
Minas…
- Minas?... Em que cidade?
- Ela não quis dizer… a única coisa que sei é que está se separando do
Ricardo…
- Até que enfim vai largar aquele traste…
- Mamãe, não fale assim…
- Ué… por acaso eu disse alguma mentira?
- Olha, é melhor a gente nem entrar nesse assunto…
As duas ficaram quietas por alguns segundos. Finalmente, Janete quebrou
o silêncio….
- E como você sabe que foi a Cecília que te mandou a mensagem?
- Bem, a gente tem nossos códigos secretos…
- Tendi…
- O que importa é que ela está bem. Melhor que nós, se quer saber…
- Mas o que deu na cabeça dessa menina, pra ir embora desse jeito?
- Ela teve seus motivos…
- Que seriam…?
- Bem, ela prometeu que depois viria nos visitar, e que então
explicaria tudo…
Os pensamentos de Janete começaram a passear por todo o Universo, e
acabou se desligando da conversa com sua filha. Seus devaneios a levaram até
seus tempos de juventude, quando ainda morava em uma pequena cidade do
interior. Foi num dia de festa do Padroeiro do lugar que ela conheceu Mario, um
rapaz muito simpático. Acabaram por se gostar, se apaixonar e casar. Tudo isso
em menos de um ano após se conhecerem… Mario era um rapaz bem apessoado, que
tinha suas raízes na mesma cidade que Janete, mas que saíra bem cedo da casa de seus pais para tentar a
sorte na Capital do Estado. Não podia reclamar, pois havia sido bem sucedido.
Rapaz tranquilo, de fala mansa, aos poucos conquistara seu lugar ao sol em uma
empresa do ramo de vendas de equipamentos agrícolas. Aliás, esse era o motivo
de sua estadia naquele lugarejo… estava visitando um possível cliente, que solicitara maiores
informações sobre um implemento agrícola no qual estava interessado…
- A senhora entendeu tudo o que eu disse, mamãe?
Janete foi chamada abruptamente para a realidade. Não sabia o que
responder a sua filha, pois não ouvira uma só palavra do que ela dissera… mas
tentou disfarçar…
- Uhn, uhn… claro que sim, Helena…
- Que bom! Então é só aguardar que ela vai aparecer por ai… agora tenho
que desligar, mãe.. beijinhos… tchau!
O telefone ficou parado no ar. A mão continuava suspensa, embora o
aparelho estivesse afastado da orelha. É claro, afinal a ligação já havia sido
encerrada. Mas Janete tentava entender o que sua filha lhe falara na ligação…
afinal de contas, quem é que iria vir na sua casa? Cecília não era, já que
Helena afirmara com todas as letras de que ela estava no interior e que tão
cedo não pretendia voltar para aquelas redondezas… então, quem poderia ser, meu
Deus?....
- Algum problema, Jane?
- Ahn? Oh, não… nada, não…
- Você ficou meio estranha, depois que atendeu o telefone…
Ela tentou mudar de assunto…
- Sabia que a Cecília está morando no interior?
- Isso para mim é novidade… desde quando?
- Quando ela tomou o chá de sumiço, tinha ido de mala e cuia para o
interior…
- Foi pra Guará?
- Não… na verdade, a Helena não sabe qual foi o destino dela. A única
coisa que sabe com certeza, é que ela foi para algum lugar perdido no interior…
- Mas quem falou isso para a Helena?
- A própria Cecília. Inclusive, disse que viria aqui em casa para
explicar tudo…
- Quando?
- Isso ela não falou. Só disse que viria…
- Sei não…
- Bem, a gente não pode fazer nada…o máximo que dá para fazer é
esperar…
- A Cecília nunca foi de agir
dessa maneira…
- E a gente sabe o que se passa na cabeça das pessoas? Tudo o que vemos
e sabemos é aquilo que está em frente aos nossos olhos…
- Sim…
- Mas pelo menos sabemos que ela está bem…
Mario não respondeu. Ficou pensativo, perdido em um turbilhão de
lembranças…de certa forma, o que estava acontecendo com Cecília e seu marido
ele já vivenciara com Janete. A um bom tempo atrás, os dois brigaram e a esposa
saiu de casa sem lhe dizer para onde iria. Foi mais de um mês de angustia e
desespero, pois não fazia a menor idéia de onde ela poderia estar. Logicamente
que a casa de seus sogros foi o primeiro lugar que procurou, sem sucesso.
Depois, casa de amigos…conhecidos… até que não sabia mais onde buscar. Tinham
pouco tempo de casados nessa época. Nenhuma das meninas havia nascido, ainda.
Foi depois que se reconciliaram que nasceu Helena, a filha mais velha. E nunca
mais tiveram uma briga nas proporções desta… claro que discussões sempre
aconteciam, mas toda vez que percebia que iriam tomar uma dimensão maior, se
afastava para um canto e esperava a esposa se acalmar. E assim foram tocando a
vida. É justo dizer que, assim como ele procurava evitar ao máximo qualquer
atrito com a esposa, a recíproca era verdadeira. Os dois procuravam viver uma
relação pacífica, sem maiores problemas que pudessem prejudicá-los. E com isso
já iam para trinta e cinco anos de casados…
Mario e Janete vinham de Guaratinguetá, cidade que fica no Vale do
Paraíba. Mario vinha da zona rural, fora criado trabalhando na roça. Quando
completou quatorze anos achou que era hora de mudar sua história de vida, e
partiu em direção a São Paulo, com a benção de seus pais. Com muito esforço,
concluiu seus estudos e conseguiu uma colocação em uma empresa voltada a venda
de máquinas asgricolas. Em pouco tempo conseguiu dominar a arte de vender e
passou a ser um dos principais representantes da firma. E como era oriundo da
Serra da Mantiqueira, acabou ficando responsável por dar assistencia aos
clientes daquela região. E foi em uma dessas viagens de trabalho que acabou
conhecendo Janete. Janete era filha de uma professora com um farmaceutico.
Sempre morou na zona urbana, e embora sua mãe lecionasse na zona rural, ela não
tinha o costume de passear por lá. Seus passeios, na verdade, se resumiam as
missas do domigo e caminhada com as amigas pela praça da cidade. Sempre havia
alguma atração no coreto, e ela adorava prestigiá-las. E num belo dia… na
verdade, já noite… os dois se encontraram na festa do Padroeiro da cidade… era
13 de junho, dia de Santo Antonio. Santo Antonio tem fama de casamenteiro… e
não é que acabou casando os dois jovens? Onze meses após se encontrarem pela
primeira vez, trocaram alianças e juras de amor eterno frente ao padre e todos
os seus familiares e amigos. Um ano depois, a primeira e ultima briga feia do
casal, quando Janete simplesmente desapareceu no espaço. Um mês inteiro sumida,
sem que ninguém tivesse a menor idéia de onde ela poderia estar. Depois, a reconciliação.
Mais quatro anos se passaram, e finalmente a cegonha lhes trouxe Helena, a
bebezinha mais linda do mundo… esperaram mais quatro anos para que a cegonha
lhes trouxesse Cecília… e mais quatro para a chegada de sua caçula, a Estela… e
assim, tocavam a vida, devagar e sem pressa.
Helena, a mais velha, sempre foi a mais centrada de todas.
Introvertida, não gostava de participar das reuniões familiares. Quando tios e
primos se juntavam, ela procurava se refugiar em algum canto, ficando fora da
vista de todo mundo. Era discreta ao extremo, procurava sempre não ser notada
por ninguém. Poucas eram as pessoas que podiam dizer que a conheciam… Cecília,
a segunda, chegou quando Helena já tinha quatro anos. Por esse motivo, não eram
muito chegadas, já que nunca tiveram interesses convergentes. Afinal, quando
Cecília começou seu primeiro ano do fundamental Helena já era uma pré-adolescente…e
quando Estela chegou na mesma fase, Helena já tinha outros interesses…
- Mario, será que está tudo bem mesmo com a nossa menina?
- Espero que sim, Jane… mas quem poderá dizer?
- Rezo a Deus que tudo dê certo para nossa menina…mas juro que não
entendo… porque ela resolveu fazer uma coisa dessas?
- Bem, ela teve a quem puxar…
- …
- Lembra quando você fez a mesma coisa?
- Eu…
- Quase fiquei doido! Te procurei por todo o canto e não conseguia te
encontrar… cheguei a ficar com pena do Ricardo… pois eu sei bem o que é passar
por isso…
- Bem, se a Ceci fez isso com ele, é porque mereceu… assim como você,
naquela época.
- Eu nem me lembro o que aconteceu…
- Quando?
- Quando você tomou chá de sumiço…
- Foi por causa daquela loira…
- Que loira?
- A filha dos Fontoura…
Mario puxou a memória, tentando se lembrar da moça de quem sua esposa
falava. Não conseguia. Nem do nome se lembrava. Mas é claro que sua esposa não
acreditava muito nisso. Para não dizer que não se lembrava de nenhum Fontoura,
o único do qual se recordava era do Biotonico, que tomou muito quando era
criança…
- Ela se chamava Fontoura?
- Deixa de ser fingido… Fontoura era o sobrenome. A moça se chamava
Laura…
Laura… Laura… realmente Mario nã se lembrava de ninguem com esse nome…
- Mas vem cá… eu cheguei a conversar com essa moça?
- Eu flagrei vocês dois se amassando, seu sem vergonha…
Agora ferrou… como é que ele podia ter se enrolado com alguem e não
conseguir se lembrar? Tudo bem, fazia mais de trinta anos, mas mesmo assim…
- Pois juro que não me lembro mesmo…
- Eu só não acabei com a festa de vocês quando os flagrei, porque eu me
conheço o suficiente e não ia prestar… por isso, preferi desaparecer…
“Espera ai”, pensou Mario, “quer dizer que passei todo aquele perrengue
porque ela me confundiu com alguém? Essa é dura de engolir…”
Sabendo que se continuasse com a conversa, acabariam brigando, Mario
resolveu dar a conversa por encerrada. Só esperava que Janete resolvesse se
esquecer do incidente, e o deixasse em paz…
- Acho que vou ligar para a Helena. Assim ela pode me inteirar do que
aconteceu…
- Faça isso, mas depois do jantar. Já vou por a mesa…
Estela acabara de abrir a porta. Ouviu a mãe falar de por a mesa.
Avisou logo…
- Não vou comer… não estou bem do estômago…~
- Filha, tem que comer, sim… os enjôos são por sua condição atual. Logo
vai passar.
- Sua mãe tem razão. Você agora tem que comer por duas. E não se
preocupe se vomitar. Depois é só comer alguma coisa de novo…
- Depois eu como alguma coisa… agora não dá, mesmo…
E subiu a escada, em direção ao seu quarto.
Mario deu de ombros. Como seu pai sempre dizia, não se obriga ninguém a
comer, só trabalhar… e se a garota não estava com vontade de comer agora, mais
tarde com certeza atacaria a geladeira. Por isso, a abasteceu com seus quitutes
favoritos. Afinal, ele não queria que seu primeiro neto chegase fraquinho ao
mundo. Depois de jantarem, ligou para Helena. Havia tentado ligar direto para
Cecília, mas a mensagem de “telefone fora da área de cobertura” foi a única
coisa que conseguiu ouvir em suas tentativas de ligação.
- Helena?
- Oi, pai… o que foi?
- Sua mãe disse que você falou com a Ceci…
- Sim, ela me ligou…
- Tem o número dela?
- Não… ela usou a opção de “número privado”…
- Por que?
- É que ela disse que só vai vir falar com a gente quando se sentir
pronta para isso…
- Mas ela ligou para você…
- Sim, mas só pra deixar a gente mais tranquila com seu destino. Ela
disse que não esperava tanto barulho com
a sua decisão de sair da cidade por uns tempos…
- E o que ela esperava?...
- Não sei, pai… de qualquer forma, só o Ricardo e os policiais
conversaram com ela pessoalmente, hoje. Ela me ligou quando já tinha embarcado
pra Campinas… mas não é lá que está
morando no momento. Só pegou esse onibus para enganar o Ricardo…
- Coitado do rapaz…
- Coitado, porque? Se não tivesse pisado na bola, nada disso tinha
acontecido…
Mario se calou por alguns momentos… não dava pra dizer que já tinha
passado por uma situação parecida alguns anos atrás…
- Bem, avise a gente, se tiver novidades..
- Tudo bem, pai… boa noite…
- Boa noite, filha… fica com Deus…
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