A TAÇA DE CRISTAL - Capítulo Vinte
Capítulo Vinte
Helena estava meio perdida, não sabia
exatamente onde se encontrava. Mas o lugar era lindo. O verde da relva baixa se
estendia até onde a vista podia alcançar. A brisa suave fazia a grama bailar
delicadamente, como se fossem ondas do mar. Sim, a paisagem era realmente muito
bela. O céu azul, quase translúcido, sem uma nuvem no firmamento… e aquela
luminosidade tranquila, fresca… era uma sensação de paz indescritível.
Caminhava lentamente, saboreando a brisa suave que acariciava seu rosto. Depois
de algum tempo caminhando, encontrou um banco de jardim, perdido naquela
imensidão. Resolveu sentar-se um pouco, para pensar e tentar entender
exatamente o que estava fazendo ali… ficou algum tempo absorta, sentindo como
se estivesse em outra dimensão, tão leve estava. Mas tinha certeza de que
deveria haver algum motivo para estar ali, naquele momento. De repente, sentiu
a presença de alguém. Mas como, se até a poucos instantes sabia se encontrar sozinha naquela vastidão
toda? E quem seria a pessoa que resolveu aparecer do nada ao seu lado? Virou-se
lentamente para as sua direita e o viu, tão lindo quanto quando o vira pela ultima
vez. Mas, como? Não conseguia entender…
Fazia já algum tempo que não se encontravam.
Porque, ela não saberia dizer. Por mais que tentasse, não conseguia se lembrar
do porque não se falarem a tanto tempo. Devia haver um motivo, mas ela não
conseguia lembrar qual seria…
Virou-se lentamente para vê-lo. Ele tocou
suavemente suas mãos. Uma sensação de arrepio percorreu todo o seu corpo com
aquele simples contato. Helena fitou-o nos olhos, aqueles olhos tão negros
quanto uma noite sem luar , mas com um brilho tão intenso que ela simplesmente
não podia desviar-se deles. Aqueles olhos lhe traziam uma sensação de paz e
ternura que ela a muito não sentia. Permaneceram assim, lado a lado, de mãos
dadas, no mais completo silêncio. Nem mesmo o arfar de sua respiração
interferia naquele momento da natureza. Então, em um dado momento, ele
finalmente quebrou o silencio que reinava entre os dois,,,
- Por que me chamou, Helena?
Ela permaneceu em silencio por alguns
instantes… então, balbuciou, espantada…
- Mas… eu não te chamei…
Novamente o silencio imperava entre os dois.
Cada frase proferida era acompanhada por um longo intervalo de tempo…
- Você sabe… que a muito deixei este plano!
Estamos ligados, e sempre que você me chama, eu tenho que vir…
- Eu… não entendo…
- Quando… parti… te prometi que ia te proteger…
lembra?
Ela não lembrava. Por mais que tentasse, não
conseguia se lembrar de nada. Apenas o vazio. Não conseguia entender nem mesmo
o que estava fazendo ali. Estava lá… na companhia dele…mas não se lembrava como
tinha chegado ali, nem porque. Ele partiu…para onde? Porque ela não conseguia
se lembrar?
- Eu… eu queria entender…
- Não há o que entender, minha querida. As
coisas são como são… é a lei da vida.
- Não consigo te entender… não dava pra ser mais
claro?
- Só posso falar aquilo que me é permitido…
Ficaram em silêncio, novamente. Helena
realmente tentava se lembrar por que estava ali… mas, por mais que tentasse,
não conseguia.
- Helena… sei que a sua vida… está um pouco…
turbulenta, no momento…
- Eu…
- Olha… as coisas poderão melhorar, com o
tempo… mas tudo vai depender de como você vai agir…
- Se você não parar de falar por enigmas, eu
vou embora…
Helena fez menção de se levantar. Ele segurou
sua mão com delicadeza, mas firme.
- Quer mesmo saber o que aconteceu? Isso eu
posso dizer. Mas o que ainda está por vir… sou proibido de falar…
- Tá… me explica de uma vez… o que estou
fazendo aqui, pelo amor de Deus?
- Sente-se. Vou te esclarecer sobre o que já
aconteceu…
Quando Helena sentou-se, ele colocou a mão
direita sobre sua fronte. No mesmo instante, como um tsunami, as recordações foram chegando em
grandes ondas. E finalmente ela conseguiu entender.
Já fazia algum tempo. Estava no último ano do
ensino secundário. Foi quando o conheceu. E logo se tornaram unha e carne.
Todos achavam que os dois eram namorados. E os dois se riam disso. Pois o que
eles tinham era algo bem mais forte que um namoro… era uma ligação que
extrapolava o físico, era uma ligação espiritual, de alma, mesmo. Eram melhores amigos, confidentes de todas as
horas. Estudavam juntos, iam passear de mãos dadas, sempre rindo, brincando com
a vida. Oscar… esse era o seu nome… procurava sempre estar ao lado da amiga.
Com Oscar, Helena descobria cada dia uma coisa
nova no mundo. Passeios a parques, museus, viagens rápidas de final de semana,
cada lugar mais lindo que o outro. Por estarem sempre juntos, a imagem de
namorados era reforçada perante familiares e conhecidos.
Ele gostava muito de viajar para o interior.
Quanto mais isolado, melhor. Um de seus últimos passeios juntos foi para uma
cidadezinha no interior de São Paulo,
localizada no Vale do Paraíba. Era São Luís do Paraitinga. Reservaram um quarto
em um sítio no centro da cidade. Passearam pelas cercanias, resolveram visitar
uma reserva florestal e fazer uma caminhada pelo parque. No final da caminhada
havia um lago, e os dois aproveitaram para brincar na água. Mas o tempo muda
rápido nas montanhas, e uma tempestade logo se anunciou. Trataram de sair da
floresta, entraram em seu carro e foram para a rodovia. A noite resolveram
comer uma pizza em uma das várias cantinas espalhadas pela cidade. Outro
passeio que fizeram foi no Vale Encantado. Ficaram o dia inteiro brincando nas
piscinas, em suas águas quentes e aconchegantes. Sim, os dois se divertiam
bastante.
- Quando vão se casar?
Era a mãe de Helena, interpelando os dois…
- Como?...
- Vocês estão juntos a um bom tempo… É hora de
oficializarem o noivado e casar…
- Mãe,
de onde a senhora tirou essa ideia?
- Desculpe, dona Janete… eu gosto muito da sua
filha… mas a gente não está namorando…
- Como não? Vivem saindo juntos para todo o
canto…
- Mamãe, nós dois somos amigos. Apenas amigos…
- E desde quando existe amizade entre homem e
mulher?
Mario, da cozinha, cortou a fala da esposa…
- Jane… isso é coisa que se diga? Porque um
homem e uma mulher não podem ser amigos? Amizade não tem nada a ver com sexo,
criatura…
- O senhor está certo, papai…qual o problema de
duas pessoas de sexo oposto serem amigas?
- É que sua mãe é do tempo em que homem só
falava com homem, e mulher só podia ser amiga de mulher…
- Mas isso é que é correto…
- Mamãe, estamos no século vinte e um…
- Desculpe, Dona Janete… eu nunca desrespeitei
a sua filha. Tenho um carinho muito grande por ela… mas nós dois não somos um
casal. Somos amigos.
- Cada uma…
Janete foi resmungando em direção à
cozinha. Mario estava fazendo o trajeto
contrário. Deu de ombros. Sabia que sua esposa jamais iria concordar com a
amizade da filha. Para ela, alguma coisa entre os dois estava errada. Será que
o rapaz não gostava de mulher? Mas, meu
Deus do céu… não dava pinta de ser homossexual, não… bem, como dizem, as
aparências costumam enganar.
- Gente, não liga para a Jane, não… ela é meio…
- Sou meio o que, Mario? Pensa que não estou
ouvindo, é?...
- Imagina, Jane… eu sei que você escuta muito
bem…
- Então você está dizendo…
- Estou dizendo que esse é o seu jeito… e que
você nunca vai mudar… só isso.
Janete resmungou alguma coisa, mas depois se
perdeu em suas tarefas na cozinha. Estava preparando o jantar e não admitia que
ninguém, nem suas filhas, “atrapalhassem” seus afazeres. Mario por várias vezes
tentava ajudá-la, mas ela simplesmente o escorraçava da cozinha. Aquele era o
seu território, e não permitia que ninguém o invadisse….
Essa foi a última vez que Oscar e Helena
jantaram juntos. Quando ele saiu da casa, ao atravessar um cruzamento, um
caminhão desgovernado atravessou o sinal vermelho e simplesmente transformou o
carro de Oscar em uma massa disforme. Dizem que ele nem sentiu o impacto. Morte
instantânea. Quando soube da notícia, Helena entrou em desespero. Acabou sendo
internada por algumas horas, devido ao seu nervosismo. Quase teve um ataque
cardíaco…
Quando seguiu o féretro de seu amigo, ela teve
uma visão. Estava triste e chorosa, então sentiu alguém segurar sua mão.
Virou-se para o lado, e lá estava ele. Então ele lhe disse essas palavras…
- Amiga, não se desespere. Estarei sempre ao
seu lado… eu nunca te abandonarei…
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