3 - O INICIO...


3 - O INICIO...

A tarde estava chegando e Maria estava prestes a largar do eito. O dia de trabalho foi bom, ela conseguiu fazer além do que esperava. Isso significava um dinheiro extra no sábado. Ela olhou para o horizonte, onde a serra começava. O sol, avermelhado, pouco a pouco baixava no horizonte, dando lugar às primeiras brumas da noite. Todos os camaradas começavam a caminhar em direção a suas casas, já pensando em quantas quadras fariam no dia seguinte. Afinal, quanto mais produzissem, mais ganhariam. E quando a colheita se encerrasse na fazenda, com certeza alguns vizinhos teriam ainda serviço para ofertar àqueles que estivessem dispostos a caminhar um pouco mais. Graça estava um pouco apressada, e seguia bem a frente de Maria, pois a primeira ainda precisava buscar lenha para alimentar o fogão de sua casa. “Bem”, pensou Maria, “acho que mamãe também precisa de lenha para cozinhar…” e tratou de se apressar para alcançar a amiga. As duas começaram a conversar sobre banalidades do dia a dia, e seguiram em direção à mata. A noite já se fazia presente quando as duas finalmente se embrenharam por entre as árvores, à procura de gravetos que servissem para sua casa. Depois de uma hora, um pouco mais, um pouco menos, finalmente o feixe de lenha das duas estava pronto. Agora era só fazer o caminho de volta para o arruado… Graça estava um pouco receosa… afinal de contas, era lua cheia… estavam na quaresma… e estavam mais perto da serra do que da vila dos colonos… e tinha o boi-tatá circulando pelas montanhas… "tomara que ele não desça até o vale", pensou com seus botões… o problema é que ela não tinha a menor ideia de onde era a origem da besta… e se a fera estivesse vindo da vila onde elas moravam? Podia muito bem ser dali… é claro que ela estava rezando para que não fosse, mas… Bem, o melhor que as duas poderiam fazer naquele momento era se apressarem em voltar para casa. E tomar o máximo de cuidado… pois a noite às vezes trazia surpresas não muito agradáveis para a vida das pessoas do vilarejo… Colocaram os feixes sobre suas cabeças e começaram a caminhar.  Depois de algum tempo, Maria perguntou para a amiga se ela não estava achando o caminho mais comprido na volta do que quando haviam entrado na mata. Graça havia percebido isso, mas não queria alarmar sua companheira. De qualquer forma, a Lua a muito já aparecera e subia lentamente no céu. Logo seria a hora das almas saírem pelo mundo, e as duas ali, perdidas no meio da mata… caminharam por mais algum tempo, e nada do fim da mata aparecer. Então Graça decidiu que era melhor pararem um pouco e rezarem, pois aí o caminho se abriria para elas.  Maria aceitou na hora, é claro. Afinal, já estava ficando apavorada com o fato de estarem caminhando a tanto tempo e aparentemente não avançarem em sua jornada. Primeiro se persignaram, depois começaram com o Pai Nosso, seguiram com uma Ave Maria e engataram uma Salve Rainha. Quando estavam na metade do Credo, a floresta foi se desvanecendo e perceberam que já estavam a poucos passos de suas casas. Sem se preocupar com o que havia ocorrido, as duas apressaram seus passos e logo cada uma estava em segurança em seu lar. É claro que Zacarias repreendeu a filha por esta ter saído da trilha e embrenhado na mata em plena noite, na Quaresma. A moça explicou que tinha reparado que o estoque de lenha estava quase no fim, e ela resolveu fazer companhia para sua amiga. Seu pai entendeu a situação, mas ainda assim alertou a garota de que tudo tinha sua hora certa para ser feita, e a noite não era para ser abusada… principalmente naquela estação… Maria deu de ombros.  Entendia a preocupação de seu pai, mas o que podia fazer? Deixar a amiga se embrenhar sozinha na floresta? Não achava isso correto, por isso resolveu seguir Graça, pois uma companhia ajudava e muito em uma hora de apuro. E Graça, muitas e muitas vezes, havia segurado suas mãos quando ela necessitou...

Já era um pouco tarde, quando Maria finalmente foi dormir. Antes havia ajudado sua mãe a finalizar as tarefas do dia... foi buscar água no ribeirão, que ficava a poucos metros de seu ranchinho, arrumou a lenha que trouxera junto com o que ainda tinha perto do cozinha, fizeram a comida que iriam levar para a roça no dia seguinte e prepararam o café que tomariam antes de pegar a estrada. Zacarias arrumou suas coisas, separou seu par de botinas e pegou a cartucheira, começando a limpá-la. Preparou a munição que eventualmente usaria, guardou os cartuchos já carregados, pendurou a espingarda na parede e finalmente se dirigiu ao seu quarto...

- O senhor vai sair em campanha, pai?

- Vou buscar umas cabeças de gado no Poço Grande. Seu Nardi comprou um rebanho, umas vinte cabeças mais ou menos...

- Vai sózinho?

- Não... vou eu, o Juca e o Tonhão...

- Voltam amanhã?

- Tá doida, menina? A gente não vai ficar andando à noite, não... a gente deve chegar aqui na fazenda daqui a uns dois ou três dias...

- Mas Poço Grande não é tão longe...

- Se a gente estiver com um bom cavalo e se a gente for direto prá lá... mas vamos conduzir uma pequena boiada... e as reses tem seu próprio tempo de marcha...

- E o senhor não tem medo de acampar na serra de noite, não?

- Medo, eu tenho... mas o que não tem remédio, remediado está...

- E o boi-tatá?

Zacarias se persignou...

- Deixa de falar besteira, menina... quem leva Deus no coração e tem fé na Virgem Maria não tem medo de nada, nem desse, nem do outro mundo...

E sem dizer mais nada, Zacarias se recolheu...

Maria permaneceu sentada no banquinho ao lado do fogão por mais algum tempo. As brasas iam pouco a pouco se apagando... era hora de deitar, pois dali a algumas horas teria que voltar à labuta diária... seus pais e irmãos já estavam ressonando a algum tempo quando ela finalmente se deitou. De repente, uma sensação ruim tomou conta de seu corpo. Apavorada com a sensação, começou a rezar, desfiando todas as orações que conhecia. Mas aquele pavor sem explicação não abandonava seu ser...


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