A TAÇA DE CRISTAL - Capítulo Trinta e Quatro


 

A TAÇA DE CRISTAL

Capítulo Trinta e Quatro

 

- Odeio quando sinto minha orelha queimar...

Era Cecília, conversando com uma colega da loja...

- Menina... mas sua orelha está vermelha....

- Eu sei... e senti ela queimando, como se tivesse posto uma brasa sobre ela...

- Será que estão falando bem ou mal de você?

- Sei lá... espero que bem...

Entrou um cliente na loja, e as duas trataram de se separar, pois agora eram competidoras... mais rápida, Cecília abordou o cliente e passou a mostrar-lhe as mercadorias que poderiam despertar-lhe o interesse... deu sorte. Fez uma venda com um valor razoável. Como ainda não tinha almoçado resolveu sair para comer alguma coisa. Foi acompanhada de Suzana, a colega com quem estava conversando antes da venda.

- Você é de onde, Cecília?

- Por que?

- Bem, daqui eu sei que você não é...

- É... realmente não sou...

- Então... você veio de onde?

- Acho que isso não te interessa... 

- E por que não?

- Porque isso é uma coisa minha... particular.

- Nossa... não está mais aqui quem perguntou...

Cecília olhou séria para Suzana. Ela não queria ser ríspida, mas não aceitava que as pessoas ficassem especulando sobre sua vida pessoal. Sempre foi reservada quanto a sua vida e não admitia que nem mesmo sua familia perguntasse qualquer coisa para ela...

Quando terminou seu expediente, Cecília retornou à sua casa. Já estava habituada ao novo lar. Era apenas um quarto, cozinha e banheiro, mas como vivia só não precisava de nada maior do que isso.  E era mais fácil de manter limpo, já que apenas ela habitava o local. Não recebia visitas... procurava ser o mais anti social possível. Simpática, porém mantendo a distancia entre ela e as pessoas. No começo todo mundo estranhou aquela moça tão reservada, mas no final acabaram se acostumando com o seu jeito, mesmo porque ela jamais se recusava a ajudar quem quer que fosse... mas era uma esfinge, no tocante a sua vida pessoal.

Já era perto das seis horas da tarde. Cecília resolveu ir à missa da noite... a Igreja Nossa Senhora do Rosário não ficava longe de onde ela morava, na Rua Itacoara. Ela subiu a rua, seguindo em direção à Igreja, e durante sua caminhada, começou a pensar em sua família, tão distante dela nesse momento. Até mesmo da chata e impertinente Estela Cecília estava sentindo falta. O que a distância não faz com os nossos sentimentos, não é mesmo? Quando estava perto de sua família, tinha vezes que sua vontade era desaparecer para o mais longe possível, simplesmente porque não conseguia aceitar as posições de cada um no tocante a como via a vida. Quantas vezes ela não discutiu, e feio com sua irmã caçula simplesmente porque não aceitava seu ponto de vista sobre algum assunto... e agora, ficava pensando na menininha que brincava ao seu lado, enquanto as duas cresciam... e sua mãe? Meu Deus, como fazia falta ouvir as broncas da matriarca da família... quer dizer... agora ela sentia falta de ouvir a voz de dona Janete! Quando estavam todos juntos, quantas vezes ela não desejava ir para o mais longe possível, só para deixar de ouvir as cobranças religiosas que esta fazia... de certa forma o seu casamento foi por culpa e obra de dona Janete. Sim, ela não gostava do rapaz, mas quando achou que o namoro estava um tanto... longo demais... a senhora começou a pressionar os dois para que oficializassem seu compromisso, como era esperado de todo bom cristão... sim, de certa forma Janete empurrou um para os braços do outro. E olha que até poucos dias antes do casamento, Ricardo não a levara para conhecer sua mãe. Cecilia só foi conhecer dona Olga uns três dias antes do casamento. Cecilia  simpatizou de imediato com aquela senhora. E não conseguia entender por que Ricardo não as apresentou antes.  Afinal, namoraram por um tempinho razoável, até que resolveram trocar alianças. De seu pai ela sentia saudades das histórias que ele contava. Embora nascido no interior, seu Mario viveu sua adolescência na cidade de São Paulo. Sozinho, apenas com a benção de seus pais, Mario se atirou de cabeça pelo mundo e se fez praticamente sozinho... não conhecia ninguém na Capital, mas tinha como missão levar algum dinheiro para ajudar sua família... e encarou o desafio, sem nunca perder suas origens. Tanto que o que mais Cecilia e suas irmãs gostavam quando ouviam as histórias contadas por seu Mario, era a riqueza de detalhes das mesmas. E o mais divertido era ele jurar para as meninas que tudo aquilo que ele relatava havia acontecido realmente... Helena era, sem dúvida, alguém que morava eternamente em seu coração. Companheira de todas as horas, sempre que necessitasse, lá estava Helena, com sua mão estendida, para apoia-la no que quer que precisasse... é verdade que na ultima  vez que se viram Helena estava meio por baixo, mas Cecilia também estava. E, com esses pensamentos, com a saudade de seus entes queridos a apertar-lhe o coração, ela finalmente entrou na igreja. Persignou-se, como é de praxe e junto com as suas lembranças caminhou pela nave, até parar em um dos bancos ainda vazios, onde ajoelhou-se e começou a rezar. Logo o padre entrou no recinto, dirigiu-se ao altar e, junto com seus auxiliares, começou a professar o oficio daquela noite.

Quando finalmente a missa se encerrou, após as benções  finais ministradas pelo padre, Cecilia ganhou as ruas. Não estava com espírito para ir direto para sua casa... nesse dia seu isolamento da família estava pesando mais que nos outros dias. A saudade do lar de seus pais a estava machucando por dentro, e ela não sabia como agir. Poderia ir visitá-los em sua folga, mas sabia que isso não iria aplacar seu desejo de voltar para o lado deles... na verdade, isso só iria aumentá-lo. Sim, Cecília não se sentia tão certa de querer continuar morando tão longe de sua família. E ela não conseguia entender isso... afinal, sempre foi tão atirada... sempre gostou de novos desafios... e no entanto, agora... pensativa, resolveu sentar-se em um dos bancos do jardim em frente à igreja. Precisava meditar um pouco. Diabos, a homilia do dia tinha que ser justo sobre a união das famílias? Se era uma mensagem divina para ela, o Onipotente estava puxando sua orelha por ter se distanciado tanto assim de suas origens... bem, a orelha queimou durante o dia, não queimou? De repente era isso mesmo. Ficou tentada a ligar para Helena... mas dominou a vontade de ouvir a voz querida, ao menos por essa noite. Tinha muito em que pensar e nada melhor que fazer apenas isso... pensar sobre o que fazer de sua vida. O seu receio em voltar para São Paulo era dar de cara com seu ex-marido. Não desejava nada de mal para ele, mas não queria vê-lo nem pintado a ouro, como se diz. A experiência que tivera durante sua vida conjugal não foi das melhores. Esperava ter uma vida a dois, se não igual, ao menos parecida com a de seus pais... mas para seu azar,  a vida em comum com Ricardo mais parecia o inferno sobre a terra. Enquanto deu para seguir o barco, mesmo aos trancos e barrancos, foi em frente. Mas quando descobriu a traição daquele que deveria ser-lhe fiel por toda a vida... mas, diabos... porque hoje tudo isso tinha que vir à sua mente?  Definitivamente, ela precisava esquecer tudo isso. Ou ia começar a ter pesadelos, igual à Helena...

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