WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS Capítulo Vinte e Quatro


 

 WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Vinte e Quatro

 

A preocupação de Juvêncio sobre a possibilidade de haver um sentimento de vingança por parte dos libertos fazia sentido... afinal só tinham passado doze anos desde que a escravidão fora extinta do país. E, logicamente, as mágoas não somem de um dia para o outro. É claro que haviam senhores que mantinham boas relações com seus cativos, mas em alguns lugares a coisa não era assim... e Juvêncio não se esqueceu da reação de Nhô Quindim, quando viu a garra em suas mãos... parecia que tinha visto o diabo em pessoa... ele reconheceu o artefato e demonstrou pavor. Pena que não tinha como convence-lo a falar mais sobre seus temores....

Ele estava no gabinete de Dona Matilde. Conversavam sobre o período pós-escravatura. Como a diretora lhe explicou, a cidade  libertou todos os seus cativos quase um mês antes que a Lei Imperial fosse assinada. E bem antes disso, alguns fazendeiros já estavam concedendo a liberdade para seus cativos. Muitos permaneciam no mesmo local, mas sendo remunerados por seus serviços. Outros, simplesmente se perdiam no mundo, a procura de um sentido para sua vida... queriam encontrar  a tão sonhada liberdade, sem se darem conta de que liberdade era um estado de espírito... e como não conseguiam visualizar isso, continuavam presos na alma...

Na verdade, a única coisa de diferente que houve durante o advento da abolição da escravatura na cidade foi a adesão em massa de um grupo da elite local à ideia da proclamação da República. É bem verdade que já haviam vários republicanos na região, assim como é verdade que a liberação dos cativos só foi possível porque chegou uma hora em que ficou inviável a manutenção dessa esfera social... sim, os escravos não foram libertos por "um gesto de bondade" de seus senhores. No frigir dos ovos, era mais cômodo para os fazendeiros pagarem pelo serviço e ter esse trabalho feito sem sabotagens, muito comum na maioria das fazendas. E isso acabava denotando a necessidade de menos mão de obra... o serviço que três, quatro escravos fariam obrigados pelo feitor, apenas um liberto dava conta, pensando na remuneração que receberia no final de semana...

Não houve surpresa na cidade quando, a onze anos atrás, chegou a noticia da proclamação da república e a deposição da família real. Na verdade, já era esperado tal gesto. Quando se soube que a família imperial havia sido expulsa do país ninguém se importou muito com o fato. Era uma página virada na história... e isso era tudo o que importava...

Depois de passar a manhã toda no gabinete de Dona Matilde, e sentindo que era hora de abastecer o estômago, convidou a diretora para acompanhá-lo até a pensão, para almoçarem. Ao contrário da noite anterior, a moça aceitou de pronto. E assim saíram pelas ruas da cidade, conversando animadamente sobre vários assuntos... sim, Juvêncio cutucava sua acompanhante de todas as maneiras, na esperança de que, sem querer, Matilde lhe fornecesse uma luz que iluminasse o caminho escuro que seguia.  Como aparentemente nada de estranho ocorrera na região após a abolição dos escravos e a proclamação da república, ele começou a fazer perguntas sobre a fundação da cidade. Afinal, era uma freguesia relativamente nova.... a cidade iria completar meio século de existência somente dali a seis anos...

O prato do dia era virado... sem problema, falou Matilde. Embora não fosse seu prato favorito, ela gostava desse tipo de comida. Juvêncio estava acostumado, afinal quando encontrava alguma comitiva, esse era o prato principal.... consistia em arroz, feijão misturado com farinha de milho, toucinho, ovo frito, torresmo, linguiça, couve, banana e bisteca de porco. O cheiro bom da comida despertava o apetite dos fregueses.  Quando chegou o pedido dos dois, estavam conversando sobre as contendas que deram origem à cidade. Poderia mesmo dizer que o fundador da cidade era o senhor Romualdo de Souza Brito, primeiro desbravador a fincar raízes na região. Oriundo de Mogi das Cruzes, viu naquele pedaço de chão a oportunidade de crescer e trazer prosperidade para a sua família. E assim o fez. Mas é claro que dificilmente viveria em paz no pedaço de terra escolhido, já que outros também reivindicavam a posse do terreno. O maior problema era que as terras tinham outro dono, o senhor Floriano Pires Cardoso que comprara  a Fazenda dos Pinhais de seu antigo dono, em Mogi-Guaçu... e isso bem antes da chegada de Romualdo... Claro que Floriano não aceitou muito bem a invasão de sua propriedade, e a partir daí, começou uma batalha pela posse da região... 

Então Juvêncio resolveu ir um pouco mais fundo... aquela região foi caminho para os bandeirantes, não é mesmo? Matilde assentiu silenciosamente. E nosso amigo perguntou-lhe se ela já havia ouvido alguma história... qualquer história... que ela pudesse lhe contar... mas não coisas corriqueiras... alguma coisa fantástica... alguma lenda local... alguma história sobrenatural sobre a região. A moça ficou alguns instantes em silencio, pensativa. Tentava lembrar-se das histórias que seu avô lhe contava, quando ainda era criança. Então, finalmente lembrou-se. Matilde explicou para seu companheiro que, a muito tempo atrás... nem tão muito, assim... os bandeirantes realmente cruzavam aquelas paragens em direção a  Goiás, a procura de ouro. Era o caminho mais óbvio... vinham da região de Santo Amaro, próximo de de São Paulo, Jaguari, Casa Branca, atravessavam o Rio Grande e se embrenhavam no sertão de Goiás... normalmente não havia problemas quanto a esse caminho. Mas, segundo seu avô, depois de dizimarem uma aldeia de bugres que não viam com bons olhos aqueles forasteiros invadirem suas terras, algumas coisas estranhas começaram a acontecer. Havia vários descendentes de índios entre o grupo de aventureiros, e esses começaram a dizer que Anhangá estava vingando os mortos que eles deixaram para trás...

É claro que esta era uma história que Juvêncio gostaria de ouvir. Mas Matilde estava com pressa, tinha que retornar para a escola. Combinaram que em outra oportunidade  ela contaria tudo, tal e qual ouvira de seu avô. Mas não naquele momento. O dever a chamava... e ela já estava ausente de seu posto a muito tempo... uma escola tinha que ser gerida com mão de ferro, ou tudo poderia desandar. E os pais de seus alunos poderiam facilmente destituí-la, se não mantivesse tudo de acordo com as normas vigentes da sociedade... e os dois voltaram a caminhar, desta vez em direção à escola... mas Juvêncio só a acompanharia até o portão do estabelecimento de ensino. Afinal, ela tinha muita coisa para resolver a tarde. Muitos dos problemas que poderia ter resolvido de manhã foram adiados, para poder dar atenção ao delegado. Sim, ela simpatizara com Juvêncio...

 

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