WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS Capítulo Vinte e Três
WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS
Capítulo Vinte e Três
Os dias transcorriam com uma calma relativa. Os
incidentes diários não fugiam daquela rotina normal. Tudo andava como deveria
andar... o máximo que o delegado Santana precisava fazer nesses dias era
apartar briga de bêbados que exageravam na cachaça ingerida... Sim, a
tranquilidade havia chegado na cidade...
Aproveitando a calmaria, e sabendo que ela não duraria
muito tempo, Juvêncio resolveu caminhar pela cidade. Principalmente pelo
centro. Principalmente pelos locais mais importantes... sua primeira parada foi
na estação ferroviária. Não que pretendesse viajar de trem para algum lugar,
mas era sempre bom estar por dentro dos horários de chegada e partida dos
mesmos... depois de caminhar um pouco pela estação resolveu esticar seu passeio
até o Grupo Escolar Doutor Almeida Vergueiro. Sua esperança era encontrar
naquele pedaço do Paraíso algum indício... alguma lenda... alguma história...
que o ajudasse a elucidar o que vinha ocorrendo ... claro que seria muito mais
prático se a cidade contasse com uma biblioteca... mas como se diz... quem não
tem cão, caça com gato...
Dona Matilde, a diretora da Escola recepcionou o
delegado toda sorridente. Era muito bom receber uma autoridade no seio da
escola. Ele foi conduzido até sua sala por uma professora. Começaram a
conversar, Juvêncio fazia muitas perguntas. Algumas, a professora sabia
responder, outras ficavam em aberto. Juvêncio perguntava, principalmente ,
sobre a época em que a cidade ainda vivia sob o regime escravista. Ele achava
muito importante saber se, quando houve a transição, os agora libertos tinham
muita mágoa guardada contra seus ex-senhores. Claro que a professora não tinha
como saber de memória, mas haviam registros. E foi sobre esses documentos que o
delegado fez as perguntas. Sim, houve alguns incidentes tão logo os escravos
foram libertos. Mas foi em uma proporção aceitável... mas não houve algum tipo
de rebelião contra os fazendeiros? Bem, depois da abolição da escravidão, que
houvesse registro, não. Tudo seguiu na mais perfeita ordem... dentro do
possível, é claro.
Juvêncio perguntou se poderia ter acesso aos registros
da época. Matilde explicou-lhe que não seria muito simples, uma vez que a
maioria dos documentos estariam de posse das famílias da região. Mas que faria
o possível para atende-lo, uma vez que ela conhecia a maioria das famílias, até
por sua posição na cidade. Depois de conversarem bastante sobre vários
assuntos, inclusive sobre folclore, e devido ao adiantado da hora, Juvêncio
perguntou-lhe se não gostaria de acompanhá-lo para jantar. A diretora declinou
o pedido, explicando que além de ser demasiado cedo par jantar, ainda tinha que
ir para casa, onde vários afazeres esperavam por ela. Mas não cerrou as portas
para um próximo convite...
Juvêncio continuou sua caminhada pelas ruas da cidade.
Ainda era cedo para voltar à sua pensão, então aproveitaria para pensar
enquanto caminhava. Quando se deu conta, estava em frente à Capela de Nossa
Senhora das Dores... Como estava desarmado, entrou para rezar e agradecer a
proteção divina que recebia, pois sabia que sem ela, a maioria de seus casos
"impossíveis" de resolver seriam realmente impossíveis. Sentou-se em
um dos banco e se compenetrou em seus pensamentos. Tanto que, quando o pároco
tocou seu ombro, acabou por assustar-se. Mas controlou suas emoções... não era
bom para sua imagem que as pessoas percebessem que nem sempre ele tinha o
domínio sobre tudo... de qualquer forma, achou ótimo que o padre viera até ele...
geralmente os padres eram uma fonte inesgotável de informações....confiáveis, o
que era melhor.
- Meu filho, eu não posso dizer nada...
- Não estou pedindo para o senhor falar sobre nenhum
de seus párocos, padre. O que estou perguntando é se o senhor não notou nada de
estranho nos últimos tempos...
- Como assim estranhos, meu filho?!
- Não sei, padre... qualquer coisa diferente do
normal...
- Não consigo me lembrar de nada.
- Olha... é muito importante. Não sei... algum fiel
agindo estranhamente...
- Porque?
- Vou ser sincero, Padre... o senhor, com certeza,
ouviu falar das mortes pelas redondezas da cidade...
- Sim, é claro... inclusive o delegado instituiu um
toque de recolher, e os cidadãos obedecem...
- Pois então... é justamente sobre isso que estou
falando...
- Olha, eu acho que... não, não... estou delirando...
- Pode me falar sobre isso?
- Já fazem alguns dias... um andante apareceu por
aqui... mas logo se foi...o senhor sabe, essas pessoas não ficam muito tempo em
lugar algum...
- Sim, mas... o que ele tinha de estranho?
- Seus olhos... eram negros como a noite sem lua...
- A maior parte das pessoas tem olhos negros...
- Sim, mas esse era diferente... seus olhos eram
totalmente negros... não estou me referindo à menina dos olhos...
Juvêncio deu por encerrada a conversa com o Padre.
Agora teria que verificar junto a outras pessoas se alguém mais viu esse
"homem" cujos olhos eram totalmente negros... era uma boa pista a
seguir, sem dúvida. Mas nosso amigo resolveu deixar para continuar a investigação
no dia seguinte. Agora tudo o que ele queria era um bom jantar e uma cama
quentinha a lhe esperar ....
Quando caminhava em direção a pensão, encontrou-se com
Doutor Carneiro, que vinha acompanhado de sua auxiliar. Como ela morava um
pouco afastada do centro, o doutor a acompanhava todos os dias... era um
cuidado de pai para filha, que fique bem claro. Juvêncio então convidou
os dois para jantarem com ele, e comprometeu-se a acompanhar a moça até sua
casa depois da refeição. Aceitaram, já que os dois, depois de um dia estafante
na clínica (pelo menos não foi no necrotério) estavam realmente famintos.
Juvêncio ficou contente... poderia perguntar para o doutor o que ele achava da
informação que recebera do Padre...
- Olhos totalmente negros?
- Sim, doutor... foi o que o Padre me disse....
- Isso é impossível...
- Por quê, doutor?
- Sinceramente... eu nunca vi ninguém... em tempo
algum... cujos olhos não tivessem a esclera...
- Es... o que? O que é isso, doutor?
- Esclera é a parte branca dos olhos, onde estão a
pupila e a íris...
- Podia explicar melhor?
- Uma outra hora... por mais interessante que a
conversa pareça em um primeiro momento, não creio que seja o melhor assunto
para falarmos durante a refeição... mas insisto que uma pessoa com olhos como o
que me disse é impossível... pelo menos, que eu saiba...
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