MEU PAI

"Canarinho está cantando

Por ver o dia clarear

E o sertão tá sorrindo

Por ver o canário cantar..."

Com esses versos começava uma canção muito linda, interpretada por uma dupla chamada "Canário e Passarinho". O nome da canção era "Gaiola de Ouro". O nome do autor? Não me lembro... já faz um par de anos que não a ouço, e quando era criança não me ligava muito em quem tinha escrito o que. Na verdade, a muito não ouço a maioria das canções sertanejas de minha meninice. "Luar do Sertão", "Tristeza do Jeca", "Chuá, Chuá"... aliás, essa ultima ouvi várias vezes interpretada, ao vivo, pela "Dupla Coração do Brasil", Tonico e Tinoco. Quando eu era criança, era comum os circos irem para as periferias, onde apresentavam os artistas do rádio. E, como meu pai era vidrado em música sertaneja (como já comentei aqui algumas vezes, ele tocava viola caipira e sempre que encontrava um parceiro disposto a tocar um violão com ele, abria a boca e soltava seu vozerio, interpretando as canções que tanto amava  que  o lembrava do sertão...), sempre que o circo vinha em nosso bairro e as duplas sertanejas iam se apresentar, a gente ia assistir. Por que eu me lembrei disso? Novamente, por causa de um passarinho cantando no meu quintal...

Engraçado como uma coisa tão simples quanto o gorjeio de um pássaro te desperta lembranças que a muito não afloravam... não sei, talvez seja o fato de que estamos perto do Natal e isso nos faça mais nostálgicos que de costume... o fato de que amanhã, dia 15, completará 20 anos de que ele partiu desse plano pode ter algum peso na lembrança, também...

Meu pai era um homem de estatura mediana. Sempre foi um homem de palavra. Não costumava demonstrar seus sentimentos. Aliás, a maioria dos homens daquela época eram assim. A sociedade os cobrava, e eles tinham que cumprir seu papel. Não posso dizer que o conhecia de verdade. Em alguns momentos era um doce de pessoa, na maioria das vezes, um ogro insuportável, do qual a gente fazia bem se ficasse bem longe. Mas entendo hoje que a culpa não era inteiramente dele, na verdade o mundo o forjou assim... 

Além da viola, ele gostava muito de jogar baralho, dominó, malha... e, claro, gostava de uma cachaça. A maioria dos homens gostava de entornar uma "cajibrina", como costumavam se referir a bebida. O problema é que, quando bêbado, ele se transformava totalmente. Se são já não era fácil levá-lo em banho maria quando estava são(minha mãe é uma santa... conseguia, na maioria das vezes, leva-lo no bico, como se costuma dizer, e ele acabava dormindo, sem maiores percalços...), quando alcoolizado só posso dizer... sai de perto, que a coisa vai ficar feia...

Nas épocas em que estava com alguma amante ficava realmente insuportável. Aí, acho que para suprir alguma necessidade ancestral, não raro era violento para com a minha mãe, e se ela não fosse escorregadia como o quiabo, provavelmente teria morrido nas mãos dele. Quando a bebedeira passava ele pedia perdão das coisas que havia feito, e dizia que não conseguia se lembra de nada do que havia acontecido. Eu acredito nele. Afinal, mesmo sem beber, vivo esquecendo das coisas...

Lembro que uma vez ele queria matá-la com o machado (que minha mãe usava para cortar lenha para cozinhar), e ela conseguiu escapar por um triz. Pegou eu e meu irmãozinho, e fugiu para a casa de uma irmã do meu pai, que morava no bairro do Campo Grande. Ainda bem que minha mãe se dava bem com todas as irmãs de meu pai. Quando ele ficava fora de si, quem nos acudia eram nossas tias por parte do meu pai. Na verdade, minha mãe não tinha ninguém de sua família morando aqui em São Paulo... bom, como eu estava dizendo, a gente "fugiu" para a casa de minha tia, e na manhã seguinte o plano de minha mãe era embarcar para o interior e ficar a salvo na casa de seus pais, meus avós. Nesse meio tempo, meu pai ficou sozinho, curando a bebedeira. A gente iria sair para a estação de trem as seis horas da manhã, e já estava tudo pronto, quando meu pai chegou no portão de minha tia. Quando o viu, sua irmã foi até ele e o descascou, como costumamos dizer... deu-lhe um sermão e disse que, se ele voltasse a maltratar e ameaçar minha mãe como havia feito na noite anterior, iria se ver com ela, pois ela não iria admitir tal comportamento de sua parte novamente. Acho que não falei ainda... meu pai era o irmão caçula da família, único homem no meio de um grupo de irmãs. E por ser o mais novo, respeitava muito o que suas irmãs diziam. Bem, para encerrar esse episódio, ele se dirigiu a minha mãe, pediu perdão pelo que havia feito e jurou que aquilo jamais se repetiria, que ele não mais iria desrespeita-la daquela maneira. Minha mãe aceitou seu pedido e o perdoou. Não porque acreditasse no que ele dizia, pois sabia que na primeira oportunidade tudo se repetiria novamente. Mas porque, em sua visão, não tinha outra saída. Se insistisse em ir embora, até poderia. Mas ele não deixaria que ela levasse a mim e ao meu irmãozinho com ela...

Gente, estou falando do "lado negro" de meu pai, mas ele não era só isso, está bem? Havia momentos em que ele era um verdadeiro anjo divino aqui na terra... pena que, no momento, não consigo me lembrar de nenhum episódio que ateste isso que estou falando agora...

Acho que já falei muito mal de meu querido paizinho... pode não parecer, pelo que eu escrevi hoje, mas eu o amava muito ... e sei que ele também me amava.  Eu era a favorita dele. Isso não quer dizer que não tive que fugir algumas vezes para escapar de suas explosões violentas... quando adolescente, volta e meia eu ia para a casa de meus avós no final de semana, para fugir dele...  mas, apesar dessa situação, eu o amava muito, mesmo...

Espero que Deus tenha reservado um bom lugar para ele no outro lado, e o tenha perdoado de todas as suas falta aqui neste plano. Nós já o perdoamos a muito, porque, como eu disse no começo, ele era um produto de sua época. E fugir da padronização da sociedade não é fácil...

Fiquem todos com Deus e que Ele nos proporcione a melhor quarta feira que já vivemos em nossas vidas. Que Ele derrame sobre nossas cabeças todas as benções que merecemos, e que nos ajude a trilhar o caminho da luz e da retidão. Até amanhã, se Deus assim o permitir... beijos para todos...



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