58 - NEM TUDO É O QUE PARECE...

 




58 - NEM TUDO É O QUE PARECE...


- Não entendo porque o senhor me chamou aqui, seu Zacarias...

- É que eu preciso conversar com a senhora, dona Alice...

- Sobre o que?...

- Esse é o problema, não é? Sobre o que um matuto do sertão quer falar com a professora....

- Não foi isso o que eu quis dizer... não queria ofender...

- Não se preocupe, dona Alice...  eu te entendo...

- Mas...

- Mas tem algumas coisas sobre as quais precisamos conversar....

- Por que será que tenho a impressão de que não vou gostar dessa conversa?...

- Acho que é porque a senhora não vai gostar, mesmo...

- Seu Zacarias, poderia ser mais claro, por favor?

- Vou tentar... a senhora está em nosso seio a quanto tempo?

- Uns dois, três anos... mas o senhor sabe disso...

- Sim, eu sei... a senhora veio para assumir a escola, no lugar da doma Marta, que Deus a tenha...

- Sim, isso mesmo... eu trabalhava na Capital e chegou uma hora que eu precisava da paz que o campo nos dá...

- Mas descobriu que o campo não é tão pacífico, assim...

- Sinceramente? Mesmo com os últimos percalços que estamos passando, a vida aqui ainda é melhor que na Capital...

- O Rio de Janeiro?

- Não estou falando da Capital do País, e sim do Estado...

- Entendo...

- Mas por que essas perguntas, seu Zacarias?

- Dona Alice, a senhora sabe que eu, assim como  a senhora, costumo pesquisar tudo o que ocorre a nossa volta...

- Sei... boi-tatá, mula sem cabeça...

- A melhor forma de você passar despercebida em um lugar é fazer com que as pessoas não acreditem em sua existência, dona Alice...

- Não entendi...

- Eu explico... é claro que a senhora não tem como saber, mas antes de sua chegada neste arraial, a vida por aqui era calma e tranquila. Quase não havia manifestações paranormais...

- Para... o que?

- Eu sei que a senhora me entendeu... sua surpresa é um matuto falando dessa forma...

- Sim, confesso que estou surpresa... mas... e daí?

- Daí que já faz algum tempo que notei alguns comportamentos meio fora do normal na senhora... 

- E...?

- E fui investigar... eu sou um cabra xereta... se alguma coisa me parece estranha, vou verificar...

- Descobriu alguma coisa... estranha?

- Por enquanto, não... mas só quero que a senhora saiba que estou te investigando. Porque eu não gosto muito quando não consigo entender o que se passa a minha volta...

- Porque será que tenho a impressão que o senhor não é exatamente quem as pessoas pensam que é, na verdade? 

- Porque é exatamente o que sinto em relação à senhora...

Alice suspira profundamente, com ar de enfado...

- Seu Zacarias, se não se importa, tenho que ir à Escola... daqui a pouco tenho que dar minhas aulas....

- A mŕtvi chodia medzi živými, akoby boli tiež....

Alice se volta, como um relâmpago, para a direção de Zacarias.

- O que o senhor disse?

- Ora, tenho certeza de que a senhora me entendeu perfeitamente...

O semblante de Alice estava lívido, e seus olhos, daquele azul tranquilo que parecia o céu de primavera, tornou-se negro como a noite sem lua.  Com uma voz gélida, a moça dirigiu-se uma ultima vez paras Zacarias, à guisa de despedida... 

- Muito cuidado com o que diz e pensa, meu caro... algumas vezes acabamos mordendo algo que não é para nossos dentes...

E saiu pela alameda, sem voltar-se novamente. Zacarias ficou parado, sentado no banco da praça onde tivera aquela conversa com a professora. Sim, Juvêncio tinha razão, alguma coisa naquela moça era estranha... e ele tinha que descobrir o que era... ele espera estar enganado, mas a reação dela quando o ouviu dizer a frase sobre mortos caminhando entre os vivos, como se eles também o fossem, deixou-o mais certo de que suas suspeitas podiam estar corretas... ele queria estar enganado... mas tudo indicava que a professora era uma upír... provavelmente era ela a Mulher de Branco que ultimamente aterrorizava a região... mas ainda era cedo para partir para essas conclusões...

Alice desceu a rua ainda nervosa com a conversa... quem aquele matuto ignorante pensava que era, para falar com ele naquele tom? Ele era um sujeito analfabeto, ignorante... como ousava falar com ela daquela maneira? Mas... a forma como ele se portou não condizia com um homem do sertão... na verdade, parecia mais uma pessoa que havia viajado pelo mundo, uma pessoa que tinha estudado em algum grande centro... e é isso que ela não entendia... a pronúncia dele, quando lhe falou em eslovaco, era perfeita, era como se ele tivesse morado algum tempo naquela terra... como isso poderia ser possível? E como ele poderia saber que ela viera daquela região? Sim, ela era eslovaca, porém nunca dissera a ninguém sobre sua origem... nem mesmo o doutor Alberto, com quem mantinha uma relação de quase-namoro... nunca havia dito sim para o rapaz, apenas se insinuava para este e, na hora "h", pulava fora, deixando- o desconcertado com suas ações... nem mesmo ele tinha noção de suas origens... e aquele matuto... como ele descobriu?

Alice parou na pousada de dona Monica e pediu um café com leite, acompanhado por uma broa de milho. Precisava se acalmar, e só conseguia fazer isso comendo... o engraçado é que ela poderia comer a quantidade de comida que quisesse que não engordava nem um grama em seu peso. Era esbelta. Bom, enquanto consumia seu pedido, sua raiva foi se dissipando. Passados alguns momentos, nem se lembrava mais da conversa que tiveras com o senhor Zacarias... seu único pensamento agora eram seus alunos e as lições que lhes ministraria, para prepará-los para o futuro, pois tudo o que contava para seus alunos era aprender o máximo possível para um dia, quem sabe, poderem sair daquele mundão sem fim e crescerem socialmente na Cidade Grande...

Pagou sua conta, arrumou suas coisas e seguiu em direção à escola. Tudo o que havia conversado com Zacarias simplesmente desapareceu de sua mente. Tudo o que sabia agora é que tinha seus alunos para cuidar e sua aula para ministrar... e mais tarde, depois que concluísse seus afazeres, tinha um encontro marcado com o doutor Alberto, que a havia convidado para passear pela orla do rio, para juntos apreciarem o por do sol...

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