48 - ADEUS, MANÉ DA TIANA...
48- ADEUS, MANÉ DA TIANA...
Duarte estava sentado em sua cadeira, apoiando sua cabeça no antebraço, pensativo. Com certeza, as coisas não andavam bem na região. Encontraram o morto que sumira... sim, resgataram Mané da Tiana... e agora ele realmente estava bem morto... o Delegado Vicente simplesmente cortou a cabeça de Manoel, sem nem pestanejar... quando se lembrava da cena que presenciara no dia anterior, Duarte sentia ânsia de vômito.... nunca pensou que iria assistir a uma cena como aquela... foi para isso que ficou tanto tempo nas carteiras da São Francisco? Caramba, ele havia se formado Bacharel em Direito com todos os méritos... resolveu ser delegado, para levar a Lei até os confins do sertão... e agora acontecia isso? Sim, ele estava inconformado...
Era pouco mais de duas da tarde, quando Juca chegou, todo esbaforido, acompanhado do Padre, que trazia todos os seus paramentos... queriam que Duarte os acompanhasse até os campos, pois tinham que mostrar-lhe uma coisa inacreditável... Vicente estava conversando com ele, e resolveu que deveriam ir de uma vez, sem muitas perguntas... Duarte não gostou muito da atitude de seu colega, mas fazer o que? Como ele pertencia a uma autarquia Federal, estava acima de Duarte, que aceitou o... convite... e seguiu juto com o grupo para os pastos. Estavam ainda longe do local onde Juca deixara aquilo que um dia foi o Manoel, e o cheiro de carniça se espalhava, deixando o ar simplesmente irrespirável... Apearam ali mesmo, pois os animais se recusavam a seguir adiante...
O Padre pegou um rosário, um vidro de água benta e outros apetrechos em seu alforge... Juvêncio pegou um facão... pelo brilho, deveria ser de prata... e o colocou na cintura. Duarte não entendeu, de início, qual seria a intenção do colega... e provavelmente se soubesse, tentaria impedir, embora tivesse consciência de que dificilmente teria sucesso em seu intento...
O Padre foi se aproximando da massa disforme que um dia foi o Manoel...seu cheiro estava insuportável... crucifixo em uma mão, missário na outra, iniciando a ladainha. Todos acompanhavam a cantilena, naquele ritmo sonolento e maçante... Juvêncio acompanhava o Padre, segurando as contas do rosário. Além do Padre, Juvêncio, Duarte e Juca, mais três caboclos foram convidados a acompanhar a pequena comitiva... (segundo o Padre, era necessário que o séquito contasse com sete membros, pois sete era um número místico e possibilitaria vencer as forças do mal que porventura tentassem sobrepor-se naquele local)... a criatura protegia-se como podia dos raios de sol e dava para constatar o quanto eles o feriam. Mesmo estando coberto com a manta grossa que Juca lhe havia ofertado, estava agora em carne viva, pois sua pele havia se deteriorado. O olhar de dor e desespero da criatura era de cortar o coração... Duarte sentiu-se condoído com a situação daquele que outrora fora o Mané da Tiana... mas nem o Padre, nem Juvêncio, pareciam se compadecer da situação da criatura. Já estavam perto do final do Rosário. Juvêncio, olhando para o alto, resolveu apressar o Padre, embora soubesse que não se apressa, nem se interrompe uma oração. Mas o tempo urgia, e em casos extremos.... O Padre fitou o horizonte e assentiu com a cabeça, concordando com aquilo que Juvêncio havia falado sem dizer uma só palavra... é que a tarde estava caindo, e eles não queriam que a noite os surpreendessem com aquela criatura ao seu lado. Por ora ela estava imóvel, inofensiva... até certo ponto, pelo menos... mas quando a noite caísse e a sede de sangue tomasse conta daquele ser a luta seria terrível, mesmo com todos os paramentos bentos que estavam com o grupo. O Padre apressou-se a terminar as orações do Rosário, deu a Extrema-Unção para a criatura e saiu da frente, deixando Juvêncio livre para agir, que em um gesto rápido e preciso, sacou do facão, fazendo-o relampejar pelo céu, desferindo um golpe certeiro e mortal na altura do pescoço da criatura, que tombou sem vida aos pés do Justiceiro... o gesto pegou a todos os componentes do grupo de surpresa, e alguns deles passaram mal diante de tal cena dantesca.
O sol começou a se esconder atrás das montanhas. Os primeiros raios do luar ( se é que luar tem raio, é claro) começaram a banhar a terra... e o sangue escuro que escorria no local onde antes estava a cabeça da criatura começou a ferver... e o corpo começou a se decompor com rapidez tal que os homens não conseguiam acreditar no que estavam vendo. Em poucos minutos, apenas os ossos ficaram expostos no chão... e antes que estes também desaparecessem, Juvêncio e o Padre trataram de recolhê-los e colocá-los em uma caixa, que estava preparada justamente para isso. A ultima parte do corpo a ser recolhida foi a cabeça, que ficou guardada em outra caixa. Então acondicionaram as duas caixas no cavalo do Padre, voltaram a montar e retornaram para o vilarejo, fazendo antes uma parada no Cemitério, onde as caixas foram enterradas, em duas covas distantes entre si...
Juvêncio acompanhou o padre até a igreja, Duarte e os demais integrantes do grupo, ainda em choque com a cena que presenciaram, seguiram para a Venda do Seu Malaquias e tentaram esquecer as imagens bebendo um pouco de cachaça. Provavelmente ninguém realmente conseguiu esquecer, mas nenhum dos cinco disse nada sobre o ocorrido... Duarte passou a noite sem dormir, pois todas as vezes que tentava fechar os olhos para descansar, a cena da execução do estranho ser em que Manoel havia se transformado surgia em sua mente... e assim foi a noite toda, até o amanhecer, quando Duarte foi para a delegacia. Ainda estava pensando no ocorrido do dia anterior quando a porta da delegacia se abriu e Juvêncio entrou. Sentou-se em frente a Duarte, fez um cigarro, acendeu e começou a fumar. Por algum tempo ficou em silêncio, mas em dado momento resolveu falar com o colega...
- Você ainda está impressionado com a cena de ontem?
- E não era para estar? Você matou Manoel a sangue frio...
- Desculpe, Duarte, mas aquela criatura já não era a pessoa que você conhecia.
- Como não? Eu falei com ele...
-Enquanto ele estava vivo. Esqueceu que o Juca disse que atirou naquele ser à queima-roupa e não aconteceu nada com ele?
Duarte assentiu nervoso... Sim, Juca havia dito que tinha atirado no homem que um dia foi Manoel e nada aconteceu com a criatura...
- Seu Vicente, o que foi isso?
- Isso o que, Duarte?
- O que Mané se tornou...
- Ah... bem, é uma longa história...
- Acho que você pode me dizer, não?
- Bem... esta cidade está infestada por forças do além...
- Huh? Você realmente acredita nisso?
- Você também deveria acreditar... Afinal, me viu matando um vampiro...
- Vai me dizer que...
-Sim... o rapaz foi atacado pela Mulher de Branco, como disse o Juca... e, por algum motivo, ela não o matou... preferiu transformá-lo em seu igual...
- Você quer dizer que aquilo...
-Sim, Duarte... felizmente para nós, ele ainda não havia se transformado completamente, pois ai não seria tão fácil nos livrarmos dele... a parte humana, que ainda existia, nos permitiu acabar com o seu sofrimento. Mas se a transformação tivesse sido concluída...
- Você já fez isso antes?
- Sim... mas o melhor que podemos fazer agora é nos esquecer do que aconteceu... e apenas lembrar como agir quando e se for preciso...
- Quando me lembro do olhar apavorado daquela criatura...
- É como te disse, Duarte... aquele coitado ainda era meio humano... nós lhe fizemos um favor... porque se a transformação estivesse completa...
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