WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Um

 

- Eu queria saber onde Epimeteu e Prometeu estavam com a cabeça quando criaram vocês, criaturas mortais...

Anhangá olhava para Juvêncio e Matilde, quando disse isso...

- E vocês, Moiras, por que os estão protegendo?

- Porque ainda não é a hora do embate entre vocês... Eles entraram em paz em seu reduto...

- Verdade... estão desarmados... pelo nosso código, não posso fazer nada contra eles... 

- Sabe que não confiamos em você...

- Por quê?  Eu sei que não posso contradizê-las...

- Mas você está com fome... e a fome é péssima conselheira...

- Você sabe que eu adoro os humanos...

- Sim, servidos no altar, não é mesmo?

O ente olhou maliciosamente para Graça....

- Me diga uma coisa, Átropis.... você vai cortar a linha desses mortais?

Rosa respondeu rispidamente a ele, enquanto Graça permaneceu calada, lançando lhe um olhar gélido...

- Cale-se, Cronos... sabe que não nos é permitido discutir assuntos do Olimpo na presença de mortais.
- Mas esse é um assunto que me interessa...de repente, eles podem ser meu repasto desta noite....

Desta vez é Izabel que resolve intervir...

- Cronos, não se esqueça de quem somos e o que podemos fazer...

- Eu jamais esqueceria, adorável Cloto...

- E se você não nos obedecer, acabará em Hades, tenha certeza disso….

- Calma, Átropis… você pode ter o poder de vida e morte sobre os humanos, mas comigo a coisa é diferente…

Desta vez estava respondendo a Graça, que havia lhe chamado a atenção… Rosa resolveu falar, também.

- Cronos, você sabe que nosso poder é maior que o seu. Então, façamos o seguinte… fique tranquilo, e apenas nos escute…

- E o que teria para me dizer, oh, doce Láquesis?...

- Rosa riu alto… gargalhou, na verdade. Juvêncio e Matilde se espantaram, pois nunca haviam visto a professorinha rir daquela maneira. Tudo bem, Matilde não a conhecia, mas Juvêncio, sim… e realmente ficou espantado com a reação da mesma…

- Cronos… escute com atenção… nós vamos deixar os mortais andarem livremente por seu Santuário. E você nada fará contra eles…

- Me dêem uma boa razão para isso…

As três moças dirigiram um olhar gélido para o ente…que ficou petrificado por alguns segundos. Então olhou novamente para o casal e assentiu com a cabeça…

- Tudo bem, tudo bem… não posso quebrar a ordem das coisas… mas saibam que estou com muita fome.

- Seus dias de caça terminaram, você sabe disso.

- Não, eu não sei. Estou a milênios nesse plano e sempre tive liberdade para colher meu alimento…

- Mas seu ciclo se encerrou. Você retornará a Hades. Sabe disso.

- Não… eu não sei de nada. E daqui a uma lua retornarei para minha caçada, para aplacar a fome que me devora e poder me recolher ao mundo dos sonhos…

- Você sabe porque trouxemos esse mortal até sua presença?

- Eu deveria?

- Te explicaremos… a muito a ordem do mundo foi subvertida. E esse mortal é a sua Nêmese… será responsável por te enviar ao reino dos mortos…

O ser começou a gargalhar. Era como se tivesse ouvido a maior das piadas. Como as três moiras esperavam que um relés mortal fosse capaz de vencer a ele, um dos deuses criadores do mundo?

Izabel olhou novamente para Cronos e falou…

-Temos muitos nomes, você sabe disso. E fomos convocadas para acompanhá-lo até a morada dos deuses e heróis que passaram deste para o outro plano…

- Outro nome? E qual seria, deusas do destino?

- Alguns povos nos chamam de Walküren… os anjos da morte…

- Que eu saiba, apenas Átropis merece tal alcunha…

- Você não entendeu… Quando o tempo de um campeão… seja ele deus ou mortal… se completa nesse plano… bem… além de tecelãs do fio da vida, também somos aquelas que acompanham essa alma até seu destino do outro lado.

- Você está dizendo…

- Não estou dizendo nada. O que estou te explicando é que o tempo dos deuses antigos nessa terra já passou… e que você em breve terá um embate com esse homem. E levaremos aquele que for derrotado para os eternos campos de caça…

- O Jardim do Infinito?...

- Sim, Cronos… o Jardim do Infinito… e você, como Senhor do Tempo, sabe que não podemos mentir…

- Mas já está decidido que o derrotado serei eu?

- Não. Nada nesse plano é decidido até que tal fato se realize.

- Mas você sabe que tudo que tem início, também tem um fim…

- Você mesma disse que nada está decidido, ainda… portanto, pode ser que meu tempo nesse plano ainda não acabou…basta que o mortal não me derrote.

- Isso a gente não pode te dizer… e você sabe disso…

Cronos olhou para Juvêncio com desdém… agora que o conhecia, saberia como se defender daquele mortal e continuaria nesse plano por mais alguns milênios. Já havia sido expulso dos Campos Elísios uma vez. Não permitiria ser expulso da terra, por nada no Universo. Por ele, acabaria com a ameaça naquele momento mesmo. Mas sabia que tinha suas limitações. Nem mesmo Zeus, Deus supremo do Olimpo, conseguia bater de frente com as Parcas. Portanto, tudo o que ele poderia fazer era obedecê-las… afinal, elas trouxeram seu inimigo até seu templo. Agora ele sabia quem deveria combater.

Juvêncio tinha mil perguntas para fazer, martelando sua cabeça. Porém, desde que colocou os pés naquele recinto, não conseguia pronunciar uma única palavra. Gostaria de responder ao Anhangá… gostaria de perguntar-lhe porque os nativos o chamavam por esse nome. Mas não conseguia articular seus pensamentos. Izabel percebeu seu desejo e resolveu matar sua curiosidade, dando ao deus caído a chance de explicar-se.

- Cronos, poderia explicar à sua Nêmesis porque os nativos te chamam de “Anhangá”?

- Como você, também sou conhecido por muitos nomes. E desde que fui aprisionado nessa terra, de tempos em tempos tenho que saciar minha fome. Eu recebi esse nome dos filhos deste solo quando apareci na primeira vez e fiz minha primeira colheita. Como por acaso minha primeira vítimas eram caçadores, criaram o mito de que eu estava defendendo a natureza. Eu estava me defendendo. Matando minha fome.

- Mas você só ataca de tempos em tempos… por que?

- Oh, isso? É que, depois de algum tempo eu caio em um sono profundo. E só desperto quando a fome volta a atacar…

Juvêncio ficou satisfeito com a explicação. O fato de o monstro cair em sono profundo depois de saciar sua fome era uma boa explicação. Era um vampiro, com certeza. Mas era um vampiro diferente. Que poderia se morto tranquilamente com balas de prata. Bem, por ora sua trégua estava valendo. E pelo que havia entendido, não lhe seria permitido caçar o monstro em sua toca. Teria que se preparar para a luta em campo aberto. Nada mais justo, pensou. Afinal, era uma caçada. Onde os papéis de caça e caçador estavam misturados, e não tinha como definir quem iria caçar quem. Os dois eram caça… e os dois eram caçador. Que o melhor entre os dois fosse agraciado pela deusa da vitória.

As três Marias fizeram uma deferência ao anfitrião. E devagar, lentamente, começaram a movimentar-se em direção à saída do Templo. Conforme caminhavam, os guarda do Templo iam fechando o caminho, de forma que não poderiam retornar à sala do trono mesmo que quisessem. Mas não queriam. Juvêncio agora sabia a extensão do poder de seu oponente. E sabia que nada garantiria sua vitória contra o mesmo, além de sua astúcia.

Saber quem era realmente seu inimigo não resolvia todos os problemas do condado. Afinal, de que adiantava saber que seu oponente era um deus? Juvêncio sabia que, quando viesse para o ataque, ele viria com força total… e extravasaria toda a sua fúria…

Finalmente chegaram à saída da caverna. As três Marias devolveram as armas de Juvêncio e de Matilde e Rosa agitou sua mão em frente aos olhos dos dois… no mesmo instante o casal caiu em um sono profundo…




WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Dois

 

- Dona Matilde, o que a senhora descobriu com as suas pesquisas?

- Seu Juvêncio… o senhor já não tinha feito essa pergunta, antes?

Juvêncio estava na sala da diretora, conversando sobre o caso que estava trabalhando. Sua busca pela floresta havia sido infrutífera… não conseguira nenhum resultado. Não encontrou nenhuma pista…

Como? O episódio da caverna na cachoeira? Ele não se recordava de nada. E Dona Matilde, tampouco. Sim… quando saíram do templo e chegaram à entrada da caverna, Rosa fez um encanto, onde nenhum dos dois conseguia recordar-se de qualquer coisa que tivesse ocorrido. Não se lembravam nem mesmo que tinham feito aquela excursão. Para Juvêncio, era a primeira vez que estava perguntando sobre as pesquisas de Matilde. Que também se esquecera dos avanços que tivera em sua busca pela verdade, na história da região.

- Torquato me deu algumas pistas, mas há muitas lacunas… e logo o vampiro volta a atacar…

- Calma, Juvêncio… com certeza vamos descobrir alguma coisa de útil para usarmos…

- Eu não consigo entender, Dona Matilde…a forma desse vampiro agir foge de todos os padrões que conheço…

- Por que?

- Bem, normalmente eles costumam atacar suas vítimas com dentadas, de preferência na jugular…

- Mas por quê?

- Bem, a senhorita é a professora, aqui… mas acredito que é porque o sangue é bombeado com mais força nesse local…

- Pode ser…mas não é isso que o Anhangá faz com suas vítimas?

- Não, Dona Matilde… ele corta o pescoço de suas vítimas… já se esqueceu?

Matilde dá um tapa em sua própria testa… como pudera esquecer de algo tão marcante? Afinal, desde que começaram a  aparecer os corpos com as cabeças decepadas que ela começou as suas pesquisas sobre o passado daquela região…

-Tudo bem, Juvêncio… você tem razão…

-Saber de uma coisa, Dona Matilde? Tenho a impressão de que estou esquecendo de alguma coisa… é uma sensação estranha…

- Eu sinto o mesmo…

- A senhorita está muito ocupada?

- Apenas o serviço normal…

- Se a convidar para me acompanhar para o almoço, te atrapalho?

- Oh, não, claro que não… a minha vice pode assumir sem problema…

- Então, está convidada… vamos?

Matilde sorri. Pega sua blusa, chama sua vice e vai com Juvêncio para a pensão. Eles tem muito que conversar… quem sabe se, em frente a um belo prato de macarronada ao sugo as memórias não retornam, não é mesmo?

Enquanto caminham da escola até a pensão aproveitam para observar a beleza do lugar. Ao passarem pela praça Juvêncio, vendo uma rosa que acabar de desabrochar, a colhe e a oferta para a professora, que a aceita com um sorriso de satisfação. O sol está ameno e os dois caminha devagar, conversando sobre amenidades. Por alguns momentos deixam a história do Anhangá de lado. Sabem que ele retornará, mas ao menos por alguns instantes resolvem ignorá-lo, como se jamais houvesse surgido na região…

Juvêncio olha para Matilde e pensa “meu Deus… como essa moça me faz lembrar de Rosinha…o mesmo jeitinho faceiro… o mesmo sorriso encantador… como ela pode ser assim tão…” e seguem em frente, caminhando em direção ao seu destino. No meio do caminho ficava a delegacia. E quem estava de pé, na porta, quando o casal passava? Sim, ele mesmo… o delegado Santana. Quando viu Juvêncio passando, acenou para ele. Precisava perguntar algumas coisas para o delegado, saber como foi a sua excursão sertão adentro. Quando fez essa pergunta para Juvêncio, a expressão de estranhamento, de surpresa, o deixou sem ação. Mas prosseguiu…

- Mas, Juvêncio… você partiu ontem de madrugada para lá… não se lembra de nada, mesmo?

- Não, Santana… para mim, tudo o que você está dizendo é novidade.Eu tenho certeza de que não fui para lugar algum…

Santana sacudiu a cabeça, desanimado. Como o delegado podia ter esquecido sua incursão à mata sombria? Será que ele fora encantado pelos maus espíritos que habitavam aquele local? Era uma possibilidade. Embora antes não acreditasse em almas do outro mundo depois que  presenciou a manifestação de seres do além era obrigado a admitir que existiam mais  coisas na terra do que ele jamais sonhara… e, sim, existia um outro mundo além do nosso…

- Santana, eu e a professora estamos indo almoçar… não quer nos acompanhar?

Na verdade, Santana não queria… o fato de Juvêncio ter apagado o dia anterior de sua mente fez com que qualquer desejo que tivesse de sentar-se em uma mesa para comer se esvaí sse como fumaça ao vento. Mas, de repente, uma luz poderia se acender e o delegado lhe relataria coisas que os ajudariam a destrinchar aquele nó que estava a tempos atrapalhando a rotina da cidade…

Santana seguiu com os dois e não pôde deixar de notar como estavam se comportando. Apesar da aura dos dois, dava para perceber que se sentiam atraídos um pelo outro. Santana perguntou-se se realmente deveria acompanhá-los ou se não era melhor deixar os dois curtirem o momento que estavam vivendo.

Entre um pensamento e outro, finalmente chegaram à pensão. Santana notou que, no fundo do salão, estavam as três Marias. Reparou também, que olharam fixamente para o casal por alguns instantes, antes de voltarem a sua conversa. Ele não tinha nenhuma desculpa para aproximar-se destas e tentar puxar assunto com elas… Quem sabe o que não poderiam lhe contar… mas para isso precisava fazer as perguntas corretas…

Os três sentaram-se em uma mesa próxima da saída e, pela primeira vez desde que haviam se conhecido, Santana notou que Juvêncio sentara-se de costas para  a porta. Isso era no mínimo inusitado, pois Juvêncio sempre cuidara de sua segurança, e jamais dava as costas para o perigo… o que estaria acontecendo?

Enquanto isso, na mesa das três Marias….

- Acha que agimos certo?

- Como assim? Não entendi…

- Graça, deixa de graça… você sabe do que estamos falando.

- Se está se referindo ao… passeio até o Templo… bem, não podíamos fazer nada! Apenas cumprimos ordens de um poder maior…

- Mas agora Anhangá conhece seu inimigo!

- Izabel, tinha que ser assim. Você sabe que os dois vão se enfrentar brevemente!

- Sim, mas Anhangá…Cronos é um deus… como um simples mortal conseguirá se defender… e vencer tal criatura?

- Bem, está escrito que Cronos retorna ao Olimpo brevemente…

- Você sabe que tempo não significa nada para os deuses… e para Cronos, significa menos, ainda… Afinal, ele é o senhor do tempo…

- Meninas, acho que o jeito é parafrasear Julio Cesar… “A sorte está lançada”…



WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Três


Fazia já uns dez dias que nada de anormal acontecia naquelas paragens. Tudo estava tranquilo. Tanto que o doutor Carneiro resolveu fazer a tão sonhada viagem para Santos, para realizar seu desejo de se tornar um feliz proprietário de um automóvel.

Doutor Carneiro recebeu a carta de seu amigo pela manhã, comunicando-lhe que seu tão sonhado veículo encontrava-se na alfandega. Seria necessário  ir até lá para retirar sua encomenda.

O bom doutor comprou a passagem para o primeiro trem com destino a São Paulo... de lá, embarcaria em outra composição para chegar ao seu destino...

Sua partida estava marcada para as quatro da tarde. Ficou até a hora do almoço no consultório passando instruções para sua pupila. Até agora tudo havia sido tranquilo, pois ele sempre estava próximo para auxiliá-la em caso de necessidade. Agora ela realmente iria passar por uma prova de fogo, pois teria que contar com o que aprendera na prática... e em caso de dúvidas, recorrer aos livros da biblioteca do bom doutor...

Faltavam ainda uns minutos para as quatro da tarde, e Carneiro já estava embarcando na composição. Escolheu um banco, sentou-se o mais confortável que deu e já estava pronto para a viagem que se iniciaria dali a alguns minutos...

Santana veio se despedir do amigo, e trocaram algumas palavras enquanto a composição estava parada. Sim, Santana entrara no vagão e começou a conversar com o doutor. Falou quanto ao temor sobre a viagem do médico... tudo bem, nada de mal iria ocorrer durante sua ausência. Mas... e se acontecesse?

O apito da máquina avisava a todos que o trem já iria partir...Santana despediu-se do amigo e desembarcou. Logo a grande serpente de ferro começou a se mexer. A fumaça subia ao céu... e o "chung-chung" da composição se movimentando foi pouco a pouco tornando-se inaudível... e o trem foi diminuindo cada vez mais seu tamanho enquanto se distanciava no horizonte...

Santana caminhava em direção à delegacia quando viu, do outro lado da rua, Izabel, uma das moças que acompanhara Juvêncio na excursão por este esquecida... apressou o passo, pois queria ter um dedo de prosa com a mesma, como se costuma dizer no sertão... mas não é que a moça simplesmente sumiu no ar, sem mais nem menos?

Santana não estava gostando disso... uma coisa tão simples quanto conversar com a moça, agora parecia ter-se tornado uma tarefa impossível de se realizar...

Essa... dança... entre os dois começou logo após a conversa que tivera com  Juvêncio e Matilde, quando os dois simplesmente ignoraram o fato de terem perdido um dia de sua vida. As três moças estavam presentes enquanto ele tentava tirar alguma informação de seu companheiro. Mas tudo que conseguiu foi perceber que o delegado estava muito desligado, não tomando os cuidados mínimos de segurança...

Quando tentou conversar com as três moças, teve uma surpresa nada agradável... elas haviam simplesmente desaparecido do local em que estavam. Mas ele tinha certeza de que as três não haviam saído do recinto. Aliás, até o momento em que decidiu trocar algumas palavras com elas, as três estavam sentadinhas  à mesa, fazendo sua refeição. Quando ele virou-se para a mesa delas, não havia ninguém no local...

Na verdade, o que mais o preocupava era o fato de que a pausa entre os ataques do Anhangá estava se findando, pelas suas contas. E para deixar tudo ainda pior, havia uma comitiva que deveria estar bem próxima da cidade justamente no dia em que o monstro deveria começar a atacar. Sim, era um problema  e tanto... 

Santana saiu para a rua. Estava desanimado. Não conseguia vislumbrar nenhuma luz no fim do túnel, como se costuma dizer. Pelo que ouviu, a comitiva que se dirigia para Espírito Santo do Pinhal deveria contar com umas duas mil cabeças de gado. Isso o fazia deduzir que teria ao menos uns cinquenta homens responsáveis pela condução da manada. Um banquete e tanto para a fera...

Torquato vinha em direção ao seu chefe. Parecia tranquilo. Mas Santana sabia que não era assim... conhecia seu auxiliar a tempos e sabia ver naquele rosto pétreo diferenças de humor que ninguém mais seria capaz...

Torquato fez sinal que precisava falar urgentemente. Tinha um bar logo a frente, Santana fez-lhe sinal para que entrassem no mesmo. Escolheram uma mesa afastada da porta, sentaram-se. Pediram ao dono do bar uma garrafa de cachaça. É claro quer não pretendiam se embebedar. Mas algo dizia ao delegado que o que seu ajudante iria lhe dizer não seria bem aceito de cara limpa.

- Vamos ter uma lua de sangue...

Era Torquato, falando para Santana. Preocupado que estava com a situação que viviam, tinha ido visitar o pajé de sua tribo, à procura de algum sinal sobre o que aconteceria nos próximos dias. 

- Você tem certeza?

 - Foi a mensagem que Tupã mandou...

Santana olhou seu copo, que estava pela metade. O desejo de entorná-lo era grande... faria as coisa parecerem mais fáceis... mas sabia que tinha que resistir a tentação.

- E isso quer dizer...

- Vai ser ainda pior que o pior dia que já passou...

- E não tem como impedir?

- Talvez... mas não depende de nós... somente uma pessoa pode evitar esse caos...

- E quem seria?

- O Pajé não sabe... disse que uma névoa o impedia de ver quem seria esse salvador... ou salvadora...

Os dois homens estavam desanimados. Uma tempestade se aproximava e não tinham a menor ideia de como protegerem a si mesmos e a comunidade. A única coisa da qual tinham certeza é que precisavam fazer alguma coisa para, se não impedir, ao menos amenizar a tragédia que se avizinhava. Mas aí esbarravam em uma dificuldade que não sabiam como contornar... o que poderiam fazer?

Os copos ficaram sobre a mesa como chegaram no início... com bebida até a metade. Nenhum dos dois ousou levar a cachaça até os lábios. Sabiam que precisavam se manter sóbrios e atentos, pois nuvens negras se espalhavam pelo firmamento. E o mais grave... não teriam apoio de ninguém! Afinal, ao que tudo indicava, Juvêncio fora enfeitiçado. Dona Matilde, também. As três moças...as vezes Santana desconfiava que elas nem eram reais... afinal, apareciam e desapareciam como se fossem sombras no mundo...

Sim, Santana estava realmente desanimado. Toda esperança que depositara em Juvêncio, em sua experiência de enfrentar as forças ocultas.... forças ocultas... se falassem sobre isso a ele a uns seis meses atrás, riria até não poder mais... nunca acreditara nas forças do além... mas, agora... alguma coisa grave ocorrera com o delegado federal em sua investigação... e agora Santana sentia-se sozinho... abandonado! O que ele e seu ajudante mestiço poderiam fazer? Essa era a pergunta que não tinha resposta...


WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Quatro


- Izabel...

- O que foi, Graça?

- Não estou gostando dessa história...

- Nenhuma de nós está... mas a gente não pode fazer nada...

- Não sei... 

- O que você acha, Rosa?

- Estamos de mãos atadas, vocês sabem...

- É, eu sei... mas não gosto disso. 

- A gente tem que fazer alguma coisa... caso contrário o Anhangá vai dizimar os boiadeiros...

- Nós não podemos intervir... o único que pode fazer alguma coisa é o Juvêncio...

- De que jeito? A Rosa o encantou... 

- Eu não encantei ninguém...

- Ah, não? Então por que agora ele só consegue olhar para a Matilde? Meu Deus, o homem está descuidado demais... eu nunca o vi antes ficar de costas para a entrada de qualquer lugar que estivesse....

- Meninas, vocês sabem que ele não podia ter consciência do que vai enfrentar... eu tinha que fazer o que fiz...

- Sim, mas... e agora?

- Agora? Agora a gente fica fugindo de todo mundo que pode nos perguntar sobre o que aconteceu....

- É, eu sei... como do Delegado Santana...

- Vocês sabem que, se ele nos fizer a pergunta certa, não temos como deixar de responder, não é?

- Sim, mas...

- Mas o que, Graça?

- Izabel, me explica uma coisa... desde quando passamos a agir dessa maneira?

- Que maneira, Graça? Não estou entendendo...

- Você sabe do que estou falando... esse negócio da gente ser... como é mesmo? Anjos da morte...

- Olha, eu não tenho certeza... mas acho que tudo começou lá em Quiririm, quando acompanhamos aquela deusa até o mundo do além...

- Não, tudo bem... mas por que nós?

- Não sei dizer...

- Pensa bem... a gente não tem nada de especial... você era uma caipira que morria de medo da própria sombra... eu vivia tentando ganhar um dinheirinho a mais para salvar minha mãe... a Rosa era uma esposa que sofria nas mãos de seu marido...

- É... e na verdade, nossa vida foi normal até retornarmos para nossa cidade... e de repente, tudo virou de pernas para o ar...

- Não é por nada, não, Bel... mas a partida de seu pai foi bem esquisita...

- Pelo que entendi, Rosa... bem, meu pai não era humano... o que faz de mim uma semideusa, eu acho...

- Tudo bem, você eu até entendo... se seu pai era um deus encarnado na terra... se bem que... ô deusinho mixuruca, hein?

- Graça...

- Mas é... você, tudo bem... era filha de uma criatura celestial, coisa e tal... mas, nós duas?! O que a gente tem a ver com o peixe?

- Não sei, Graça... não faço a menor ideia. Mas deve ter alguma resposta lógica...

- Se tem, até agora não percebi...

- Nem eu...

- Não seria lógico você compartilhar essa... herança mística... com seus irmãos?

- De repente isso não tem nada a ver com sangue, já pensaram?

- Sei lá... o que sei é que de vez em quando parece que estou vivendo um sonho....

- Te entendo, Rosa... comigo acontece a mesma coisa...

- Meninas, eu as entendo... juro que entendo! Mas nosso problema agora é outro...

- Eu sei...

- Como fazer o Juvêncio defender o grupo de boiadeiros que está chegando perto da cidade...

- É... porque se ele não atuar, será um banho de sangue sem precedentes... o Anhangá está morrendo de fome e virá com muita sede ao pote...

- Bel, você sabe que não posso quebrar o encanto que usei... não tenho poder para isso...

- Nenhuma de nós tem... mas se não quebrarmos a magia, ele não irá para o campo de batalha...

As três sentaram-se na cama, pensativas. Sabiam que tinham que tomar alguma providência, porém não faziam ideia de como agir. Consultar um pajé ou um pai de santo estava fora de cogitação. Um padre, então...esse não teria como, mesmo. Afinal, a não muito tempo, a Igreja havia assassinado várias pessoas que detinham algum tipo de poder sobrenatural... tudo bem que aparentemente isso era coisa do passado, mas elas preferiam não arriscar.

Depois de muito pensar, resolveram que o melhor a fazer era cavalgar pela planície. Talvez estar a céu aberto as ajudasse a ver uma luz que as auxiliasse a resolver aquele problema. 

Estavam já a um bom tempo cavalgando pelo campo quando Izabel teve uma epifania... desde que se juntaram, as três portavam o pingente que lhes dava o poder que, neste momento, mais atrapalhava que ajudava... e se o guardassem por algum tempo? Talvez as coisas ficassem um pouquinho normais para elas...

Aproximaram-se de um arvoredo, próximo de um regato. Desmontaram sob a fronde de uma árvore e soltaram suas montarias, que foram saciar a sede. Sentaram, e ficaram absortas, tentando pensar em uma solução para seu problema imediato. Sim, porque tinham um problema em mãos e precisavam resolvê-lo. Mas como, se não podiam agir contra as diretrizes que receberam? Sim, ela tinham  que seguir um padrão de comportamento, não importava quem fosse prejudicado com isso. E essa situação as incomodava...

Izabel estava pensativa quando, de repente, teve uma epifania... desde que começaram a usar seus pingentes, deixaram de ser elas mesmas para se tornarem outras entidades... e se os retirassem por algum tempo? Será que as coisas voltariam ao "normal"? Não dava para garantir isso, mas... valia a pena experimentar...

A garota expôs sua ideia para as amigas e, ato contínuo, todas tiraram seus cordões do pescoço. Graça e Rosa entregaram seus pingentes para Izabel que colocou os três próximos um do outro... e as peças se fundiram em uma só, formando novamente o medalhão original.

As três ficaram olhando para o medalhão, como se não estivessem compreendendo exatamente o que acontecia ao seu redor. Rosa levantou-se, caminhou um pouco, examinando o local onde se encontravam. Virou-se para as outras duas, com um ar de espanto...

- Meninas, como é que viemos parar aqui?

- Acho que a cavalo... pelo menos são as nossa montarias que estão pastando logo ali...

- Graça, deixe de Graça... que nossos animais estão aqui a gente já viu... mas como é que viemos até aqui sem percebermos?

- Não sei... Bel, o que o medalhão que seu pai te deu está fazendo no chão?

- Juro que não sei...

- É melhor você guardá-lo, antes que o perca... afinal, é a ultima recordação que você ganhou dele, não é mesmo?

- Sim... estranho... porque eu o traria para o meio do mato?

- E eu é que sei? Mas é melhor guardar...

Izabel pegou o artefato, embrulhou-o com seu lenço e o guardou no alforje de seu cavalo. Deu um piparote em seu chapéu e voltou a sentar-se debaixo da sombra da árvore... o dia estava realmente quente... tanto que Graça resolveu despir-se e se atirar na água, para refrescar-se.... e logo foi seguida pelas duas amigas, que ficaram brincando na água por um bom tempo...




WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Cinco


Aquela manhã Juvêncio acordou sentindo alguma coisa diferente no ar... sentia que havia alguma coisa que deveria fazer, mas não sabia o que... saiu de seu quarto, foi até o salão, tomou seu desjejum e saiu à rua. A princípio ficou parado, sem saber para onde ir. Então, como em um estalo, seguiu em direção à delegacia... de repente veio-lhe a ideia de que deveria conversar com o delegado o mais breve possível.

Uns quinze minutos depois já estava na porta do escritório do delegado. Terminou seu cigarro, jogou a bituca fora e entrou na sala. Santana ficou surpreso com a visita. Afinal, desde a tal excursão que não conseguia falar com seu colega...

- Podemos conversar, Santana?

- Claro, Juvêncio... na verdade a gente precisa mesmo conversar... o que aconteceu, rapaz?

- Sinceramente, não faço a menor ideia... a última coisa que me lembro é que eu e a Matilde íamos a algum lugar. Só que não faço a menor ideia de para onde estávamos indo...

- E do que você se recorda? 

- Recordar? Aí é que está... não me lembro de nada... tudo o que sei é que acordei na minha cama... o que se passou? Simplesmente não sei...

- Espera... então você não se lembra de ter saído, a três dias atrás, com dona Matilde e as três moças suas amigas?

- Três dias?! Já se passaram três dias?!

- Sim....

- Então hoje....

- Sim, parceiro... hoje o Anhangá deve voltar a atacar.... e sabe o que é pior? Tem uma comitiva bem perto da cidade... se a gente não conseguir parar a fera, vai ser uma carnificina...

O semblante de Juvêncio ficou carregado. Como é que três dias foram assim apagados de sua mente? Não, isso não podia estar certo...

- Santana...

- Pode falar...

- Eu sai com as três moças?

- Sim... seu grupo era formado por você, a dona Matilde e as três....

- Não me lembro disso... juro que, para mim, era só eu e a Matilde...

-  Bem... e quanto à comitiva?

- Estão muito longe da cidade?

- Quem dera... antes do anoitecer já estarão nos arredores...

- E onde você acha que irão acampar?

- No único lugar que se presta para isso...

- Perto das cachoeiras? 

- E onde mais? É um lugar que tem pasto para os animais e água a vontade...

- O Torquato?

- Chega daqui a pouco...

- E o doutor?

- Viajou... resolveu comprar aquele tal de automóvel...

- Então vamos ser apenas nós três, essa noite... 

- Não entendi...

- Seremos apenas nós três a combater o Anhangá...

Os dois começaram a conversar sobre outros assuntos. Juvêncio pediu os mapas da região, de vez em quando perguntava alguma coisa, depois simplesmente examinava uma região ou outra... quando Torquato chegou, convidou-o a participar da reunião. Pedia sua opinião sobre quase tudo... Torquato estranhou... afinal, a maioria das perguntas que o delegado lhe fazia, já haviam sido respondidas em outros momentos. Quando a tarde foi chegando, Juvêncio e seus dois parceiros começaram a arrumar suas armas... pretendiam sair para a campina assim que o dia se findasse, anunciando o anoitecer. Pretendiam chegar até a comitiva depois que já tivessem montado acampamento...

O sol estava começando a baixar no horizonte. Juvêncio, Santana e Torquato examinavam seus equipamentos e munições... tudo de prata, como era de praxe. Depois de checar uma ultima vez, montaram e saíram a passo lento, em direção ao provável local em que a boiada passaria a noite. 

Já estavam próximos da saída do povoado, quando ouviram um tropel e se viraram para conferir... eram as três moças, que se posicionavam ao seu lado. Não dá para dizer que Juvêncio e sua turma ficaram muito felizes com a companhia, mas não podiam impedir as moças de acompanhá-los.

Depois de algum tempo cavalgando, quando as primeiras estrelas já apontavam no céu, avistaram o acampamento, o gado espalhado pelo campo, uma fogueira ao centro e vários homens andando de um lado para o outro, cuidando dos animais.

Já estavam bem próximos do local quando foram parados por dois guardas da equipe, que pediram para que se identificassem. Os três mostraram seus distintivos e foram autorizados a adentrar no espaço do acampamento. Logo estavam apeando, e foram recebidos por um mulato forte, parecendo um gigante. Era o responsável pela comitiva.

Logo os sete estavam reunidos em volta da fogueira.  Jacinto... esse era o nome do boiadeiro... convidou os recém chegados a compartilharem seu repasto. Estavam assando um churrasco, tinham carneado uma rês assim que acamparam. Enquanto devoravam as lascas de carne assada, Juvêncio resolveu explicar o motivo de sua presença naquele local. A princípio Jacinto fez ar de incrédulo. Mas conforme ia ouvindo as explicações da turma, passou a uma expressão preocupada...
Jacinto começou a perguntar sobre o que os esperava durante a noite. Queria saber como poderiam se proteger... Juvêncio explicou que o ideal era que se formassem grupos de três boiadeiros, para patrulhar o perímetro do acampamento. Explicou também que a munição comum não teria efeito algum no atacante noturno. Quando falou que a única defesa do grupo seria munição de prata, o desânimo tomou conta de Jacinto... onde ele iria arrumar munição de prata para equipar seus homens?
Dúvidas à parte, considerando que a noite caminhava inexoravelmente, Jacinto tratou de reunir seus líderes e pediu aos mesmos que organizassem os grupos conforme Juvêncio explicara. E que depois que tudo estivesse concluído, que as equipes lhes fossem apresentadas, para que pudesse passar as ultimas instruções.
Foi realmente uma correria. Os responsáveis pelos vários grupos não sabiam ainda o que se passava... Jacinto achou melhor abrir o jogo depois, quando os homens já estivessem organizados, pois aí se sentiriam mais seguros quanto à decisão que deveriam tomar... que, aliás, era uma só... permanecer em grupo e tentar sobreviver até que o sol raiasse, pois segundo as palavras dos delegados, aquela seria uma noite infernal... 
Não demorou muito... talvez uns quarenta minutos...talvez um pouco mais... e todo o efetivo foi dividido em 20 grupos. Eram quatro líderes, então cada um respondia por 15 homens. Jacinto resolveu conversar com um grupo por vez... seria mais tranquilo, pois não haveria tumulto...
Depois que explicou tudo para as várias equipes, ficou um pouco mais tranquilo. A determinação que vislumbrou no rosto de seus homens fez com que sentisse que venceriam mais aquele perigo... que, no fundo, não era muito diferente de uma derriçada... afinal, o estouro de uma boiada, ainda mais nas dimensões daquela que estava conduzindo, era o próprio inferno na terra...
Agora seu problema era outro... onde arranjar a munição apropriada para a noite que seguia? Todos estavam atentos, mas com exceção de um ou outro vaqueiro que portava um punhal de prata, a grande maioria usava aço, mesmo. E, pelo que Juvêncio dissera, quanto mais longe do tal monstro, melhor... o que significava dizer que portar um punhal de prata ou de aço não faria muita diferença... o ideal era ter as armas municiadas com balas de prata... só que é claro que esse era um item que não constava no estoque do grupo... 


WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Seis


- Izabel...

- Pois não, seu Juvêncio?

- E aquele truque, em que vocês converteram as balas de chumbo em 

balas de prata?

- Na verdade, quem fez a magia foi o meu pai... nós só fomos o canal para a realização do encanto...

- E vocês... não tem ideia de como repetir a magia?

- Infelizmente, não... precisaríamos de um feiticeiro que conhecesse os princípios da transmutação dos metais...

- Não entendi...

- Basicamente, nós três comporíamos a pedra filosofal. Mas para ativar esse poder, é necessário que alguém versado em magia use o encantamento correto...

- Vou fingir que entendi tudo o que a senhorita disse...

- Será que o Torquato...?

- A gente pode perguntar... mas não creio!

- Para o nosso bem, espero que ele seja versado em magia...

- E o seu medalhão?

- O que tem ele?

- Não pode ser usado para fazer o encanto?

Izabel ficou pensativa por alguns instantes... não havia aventado essa possibilidade. Mas, sim... talvez fosse possível. Não o medalhão, é claro. Mas os pingentes reuniam a energia das três... sim, talvez fosse possível...

- Seu Juvêncio... acabei de pensar em uma coisa... não posso garantir que vá dar certo... mas é a única coisa em que pensei...

- E seria?!..

-  Depois eu falo... com licença..

E Izabel afastou-se do justiceiro, indo de encontro às suas amigas. Sim, havia pensado em algo. Se daria certo? Não tinha como saber... mas quem não arrisca...

Juvêncio observava a moça enquanto essa caminhava até suas amigas. O que será que ela teria pensado, que poderia resolver o problema imediato deles? Bem, a única coisa que podia pedir era... que desse certo... eles não tinham tempo para falha de nenhum tipo... afinal, o Anhangá viria com toda a sua fúria... e se não encontrasse resistência da parte dos viventes que ali estavam... era melhor nem pensar nessa possibilidade. Não. O plano de Izabel iria dar certo.

Juvêncio olhou para o céu. A posição da lua lhe dizia que deveriam ser mais ou menos umas dez horas da noite. Isso significava que eles tinham ainda umas boas duas horas para se preparar. Mas teriam que se apressar, pois o tempo não espera...

Jacinto caminhava de um lado para o outro, dando ordens, orientando seus homens. Como eram quatro equipes, determinou turnos de duas horas para cada grupo. Mas o que realmente o preocupava era a munição. Juvêncio havia cedido duas caixas de balas de prata, mas eram apenas cem tiros... e se não fosse suficiente?

As três Marias se reuniram. Não dava para ver o que faziam, pois estavam em um dos pontos sem iluminação do acampamento. Escolheram aquele local justamente porque teriam uma certa privacidade para tomarem as atitudes que julgassem necessárias. Longe da vista de curiosos.
- E se não der certo?
- Rosa, é nossa única opção...
- Eu sei... mas quando usamos os pingentes, incorporamos outras entidades... e não sabemos o que elas acham que devem fazer...
- O que você acha, Graça?
- Bel, a Rosa está certa até certo ponto... mas você também tem razão. Não temos opção...
- Bem, pior do que está não pode ficar... vamos em frente!
E começaram a fazer o ritual para a separação dos pingentes. No final, cada uma pegou o seu e o colocou no pescoço... a energia mística que emanava das peças passou a fazer parte de seus corpos... e elas se sentiam capazes de fazer tudo o que desejassem...
Juvêncio, Torquato e Santana estavam caminhando pelo acampamento quando Izabel os chamou. Voltaram céleres até o local em que as três se encontravam.
- E então?
- Peça para o líder reunir toda a munição e armas brancas no centro do acampamento, perto da fogueira... não tão perto, é claro...
- É claro. Acha que podem replicar o encanto?
- Nesse momento eu posso invocar o poder de Dionísio...
- Sim... e...?
- E poderei transmutar o chumbo e o aço em prata... é tudo que posso fazer por vocês... depois disso, não poderei mais interferir, até que tudo se tenha consumado!
Juvêncio deu de ombros. Afinal, ele já estava acostumado... desde a primeira vez que se encontraram que as três se limitavam a dar-lhe os meios de partir para a batalha... mas a ajuda se limitava a isso. De qualquer forma, ele sempre lutara suas batalhas confiando apenas em seus braços. Não seria diferente dessa vez...
Quando Juvêncio pediu para Jacinto reunir todas as armas, como Izabel havia solicitado, este o olhou com ar de estranheza. Como assim, reunir toda a munição do acampamento? O que aquele delegado... se é que era delegado, mesmo, estava pretendendo? Bem... a história que havia ouvido era fantasiosa... Valeria a pena se arriscar e entregar assim, de mão beijada, toda a sua munição para esse estranho?
Jacinto pediu licença ao grupo de Juvêncio e se retirou, indo consultar seus tenentes sobre o que o delegado pedira. Embora parecessem ser boas pessoas, o grupo do delegado era desconhecido para o boiadeiro. E ele resolveu não tomar sozinho uma decisão que poderia colocar o grupo todo em risco... 
Juvêncio estava aflito... tinham menos de duas horas para se organizarem, com pena de serem atacados pela entidade mística...  mas o grupo de boiadeiros não chegava a um denominador comum.
Havia aqueles que já tinham escutado boatos sobre o que ocorrera naquela região a pouco tempo... e aqueles que nunca ouviram nada. Entre os que ouviram tinha aqueles que acreditavam piamente nas histórias e outros que consideravam tudo história para boi dormir... afinal, um cortador de cabeças agindo impunemente, e sem ser visto por ninguém?
Vendo que o tempo corria e o grupo não se decidia sobre o que fazer, Juvêncio achou por bem se preparar para o que poderia se iniciar a qualquer momento.  Puxou pela memória, tentando lembrar-se de alguma simpatia que pudesse proteger o acampamento durante a noite... conhecia algumas, mas nenhuma delas lhe vinha à mente quando mais precisava.
Torquato e Santana  perguntaram ao colega o que poderiam fazer, para frustrar o ataque iminente. Juvêncio foi sincero... disse que, embora tentasse se lembrar de qualquer coisa que pudesse ajuda-los, não conseguia pensar em nada...
A lua caminhava no céu, indiferente aos anseios dos pobres mortais... ela estava quase atingindo seu ponto mais alto, onde dividia a noite do dia... Juvêncio estava cada vez mais preocupado... a hora do vampiro se aproximava, e a turma dos boiadeiros ainda não havia chegado a um consenso...
Ao longe, uma coruja fazia ouvir seu lúgubre canto...

WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Sete


O tempo avançava inexoravelmente... a Lua caminhava pelo firmamento, lembrando aos  mortais que mais hora, menos hora, teriam que enfrentar o inevitável... a maioria dos homens caminhava agitada pelo acampamento, mas não faziam a menor ideia do porque patrulharem o perímetro em grupos de três e não em dupla, que era o usual. Quando alguém perguntava a um dos líderes o porque dessa ação, não tinham resposta. Isso porque os líderes, com exceção dos tenentes de Jacinto, não faziam a menor ideia do que estava acontecendo... ou poderia acontecer.

A tensão no ar estava palpável... o ambiente estava tão tenso que parecia que qualquer fagulha poderia explodir no ar... sim, os peões sentiam que algo mais sério estava acontecendo... o principal sinal? A munição de prata que receberam. Cada homem recebeu doze munições e foi orientado a carregar sua arma com estas, em substituição à munição normal. Quando perguntaram do por que dessas duas cargas que recebiam, nenhuma resposta obtiveram...

Juvêncio caminhava de um lado para o outro, e não escondia seu ar de preocupação... sabia que a hora da besta se aproximava... e tinha certeza de que os pobres diabos não tinham nenhuma chance de defender-se da fera... se ao menos Jacinto desse sinal verde para que ele pudesse fazer alguma coisa... mas isso não seria possível... ao menos por enquanto...

- Meninas, temos que fazer alguma coisa...

- Izabel, por favor, não inventa...

- Graça, temos que fazer alguma coisa... logo a Besta vai atacar...

- Eu sei... está escrito que será assim...

- Mas se não ajudarmos será uma carnificina...

- Você sabe que estamos proibidas de interferir no que quer que aconteça...

-  Eu não vou interferir... apenas vou ajudar o Juvêncio...

- Nem pense nisso... sabe quais seriam as consequências...

- Na verdade, eu não sei, não... e, mesmo que soubesse, que se dane... não vou deixar o Juvêncio lutar sozinho...

- Mas ele não está sozinho... o Torquato e o Santana estão com ele...

- Você me entendeu, Rosa... deixa de gracinha... está parecendo a Graça...

- Você também... fique no seu canto... e não interfira no que não é de sua alçada...

Izabel deu de ombros, levantou-se do local onde estava sentada e começou a caminhar...

- Onde você vai?...

- Vou caminhar um pouco... não posso?

- Claro que sim... desde que não se meta no que não é de sua conta...

Izabel deu de ombros. Começou a caminhar. Mil ideias passavam por sua cabeça. Um turbilhão de pensamentos a atormentava, sem trégua. Sim, ela sabia que era a reencarnação de uma das Walküren e seu papel se resumia em acompanhar o perdedor de uma batalha para os Campos Elísios... mas ela não conseguia ficar parada, vendo a tragédia acontecer diante de seus olhos. Sim, pois ela tinha certeza de que, desta vez, o ser sobre humano não se contentaria em simplesmente ser conduzido ao mundo do além... sim, elas o conduziriam para lá, mas antes... 

Anhangá estava faminto... não havia ódio em suas ações... apenas fome. Ele se alimentava da energia vital dos seres humanos... mas era hora da entidade recolher-se ao local de origem...

Em sua caminhada Izabel avistou Juvêncio e seus companheiros conversando. Resolveu juntar-se a eles...

- Estou falando, Santana... daqui a pouco chega a hora da fera... e o boiadeiro ainda não se decidiu...

- Entendo, Juvêncio... mas o que podemos fazer? Você conversou... explicou o que vai acontecer... se ele não quer ouvir, paciência...

- Sei que eu não devia falar assim, mas... os senhores não acham que nós deveríamos ir embora enquanto podemos?

- Torquato... nem em pensamento deveria dizer isso... esse povo precisa de nossa ajuda...

- Mas pelo visto, eles não querem, seu Juvêncio... e a gente ficar aqui é colocar o pescoço no laço, junto com o deles...

- Bem, eles tem duas cargas de prata para se defenderem...

- Que não é suficiente... porque a gente sabe que a fera vai atacar primeiro aqueles que estão indefesos...

- Eu sei... por isso é que vamos montar guarda no local em que os vaqueiros estão dormindo...

- Mas é isso que estou dizendo, seu Juvêncio... a gente vai estar desprotegido...

- De forma alguma... estaremos sempre guardando uns aos outros...

- E se ele atacar nesse ínterim?

- Nos defendemos... a nossa posição é justamente essa... defensiva.

- Mas...

- Desculpa... posso me juntar a vocês?

- Claro, senhorita...

- Vai nos ajudar?

- Sabem que eu não posso... mas...

- Se não pode, o que adianta se juntar a nós?

- Calma, Torquato... ela disse "mas"...

- E daí?

- Daí que acho que deveríamos ouvir o que a moça tem a dizer... 

Izabel sorriu, agradecida. Ela tinha uma ideia e queria  expô-la para os cavaleiros. Se desse certo, seria a solução que tanto procuravam... 

Conforme a hora ia avançando Jacinto se sentia mais preocupado. Não deixava transparecer, mas o medo de que aquele trio estivesse certo e alguma coisa realmente estivesse para acontecer... mas entregar a munição... era bem mais que as cem que recebera do líder do grupo... e quem podia garantir que a munição funcionava, mesmo? Essa dúvida o assaltava desde que o delegado lhe solicitara toda sua munição... para que ele precisava disso? Só se estava pensando em desarmar todo o grupo para roubar o gado... 

Juvêncio e seus amigos começaram a se movimentar. Jacinto estranhou, pois não entendeu o que estavam fazendo. Notou que os seis se postaram em volta do acampamento principal, onde os seus homens descansavam. O que ele estranhou? A formação... era um homem, uma mulher... e assim sucessivamente. Parecia que formavam uma parede protetora... talvez ele estivesse enganado com relação ao grupo... bem, não seria a primeira vez...o único problema era que, se ele estivesse errado, colocaria a vida de todos os seus peões em perigo...

As três Marias estavam separadas, mas apesar disso se sentiam unidas mais que nunca... a energia que fluía através do solo simplesmente as tornava fortes... tão fortes que quase se sentiam invencíveis... mas sabiam que não podiam se permitir a ter essas sensações... deveriam sentir-se neutras, sem definir qual lado da batalha poderia contar com sua ajuda... mas é claro que Izabel já tinha escolhido seu lado, mesmo sob protestos de suas companheiras...

Juvêncio e seus companheiros sentiam aquele poder estranho correr por seus corpos... a sensação era de estarem sendo espetados por mil punhais... mas sabiam que tinham que permanecer em suas posições, pois só assim teriam alguma chance de vitória contra o Anhangá... que, como Izabel havia explicado, era um ser muito mais velho... mais velho até que o próprio tempo... e que tudo faria para continuar nesse plano... afinal, estava ganhando servidores fiéis... e um deus só existe enquanto as pessoas o cultuam...

 

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WALKÜREN - AS TRÊS MARIAS

Capítulo Sessenta e Oito

 

A hora fatídica se aproximava... um vento forte e enregelante começou a soprar, vindo do leste... sim, o perigo vinha do Nascente... o que, de certa forma, era um tanto quanto estranho... afinal, se resistissem até o alvorecer, a criatura que temiam se desfaria em pó... retornaria aos confins do Infinito de onde viera...

Embora o centro do acampamento permanecesse calmo e tranquilo, as bordas do círculo formado pelos três casais era fustigado pela fúria da Natureza... o vento soprava com tal força que parecia que as árvores ao redor seriam arrancadas do solo e atiradas contra as pessoas a qualquer momento. Raios e coriscos cortavam o firmamento. De quando em quando se percebia a silhueta de um ancião a rondar o local em que as pessoas se encontravam... ora ele crescia, ora encolhia... sim... era o deus que não queria voltar ao seu local de origem lutando para continuar nesse plano... 

Os seis estavam em posição de lótus... e quem os olhasse de longe, pensaria que eram estátuas, tão compenetrados estavam. As moças seguravam em suas mãos seus pingentes com força tal que seria impossível alguém tira-las das mesmas. Os homens estavam com suas mãos a postos, e os olhos fechados, como se fizessem uma oração. E na verdade, era isso o que faziam naquele momento... um pouco antes de se posicionarem onde agora se encontravam, Maria Izabel ensinou a eles um mantra e pediu que o repetissem sem descanso, pois provavelmente seria a única coisa que protegeria o acampamento naquela noite...

Quando Izabel retornou para com suas parceiras, foi duramente criticada por estas, pois uma vez mais estava indo contra aquilo que lhes fora determinado. Mas depois de algum tempo, aceitaram suas razões, concordando em auxiliar as pessoas que ali se encontravam. E então se posicionaram, formando um hexagrama imaginário, mas que tinha força para impedir o acesso a qualquer poder sobrenatural que tentasse invadi-lo nessa noite...

E o tempo mudou radicalmente, fora do perímetro traçado pelas moças...foi quando Jacinto compreendeu que deveria ter ouvido o delegado misterioso... mas agora era tarde, nada mais se podia fazer. Bem, sempre se poderia fazer uma oração... e torcer para que sua fé fosse suficiente para manter longe do acampamento aquela força que eles não compreendiam, mas que estava a ataca-los...

Quando a Natureza começou a obedecer os comandos de Anhangá todos os vaqueiros se dirigiram ao centro do acampamento, próximos aos líderes. Sem demora, Jacinto passou a colocar seus homens em círculo, como se pudesse formar uma barreira mística assim... claro que ele nada entendia de magia, então tudo que fez foi por instinto... mas que no final parecia dar certo... na verdade, se tivessem ligado as pontas do hexagrama com certeza a proteção seria maior... mas ele não teve nenhuma orientação sobre como proceder, então foi por instinto, mesmo...

Os raios estouravam a poucos passos dos seis pilares, que eram Juvêncio e sua turma. De vez em quando Anhangá se fazia visível, na tentativa de assustar Juvêncio e os outros. Assumia as formas mais medonhas que se pode imaginar, porém nada demovia aquela almas fortes de seu local de proteção... e tudo o que Anhangá precisava era de alguém que tivesse o mínimo de dúvida sobre o que estava sendo feito...

As horas passavam lentamente... cada segundo tinha a duração de um século para aquelas pessoas... o cansaço de todos era visível, e a entidade começou a rir... sua vitória parecia próxima. Jacinto aproximou-se do local em que se encontrava Juvêncio, mas ao vê-lo compenetrado percebeu que não poderia distraí-lo por qual motivo fosse... afinal, era a sobrevivência de todos que estava em jogo naquele momento. Ia retirar-se, quando percebeu um pequeno gesto do homem à sua frente e tratou de aproximar-se um pouco mais. Então, sibilando entre dentes, Juvêncio passou-lhe algumas instruções. O boiadeiro retornou rapidamente junto aos seus comandados, dividiu-os em grupos de sete, colocando os melhores atiradores na frente. Pegou toda a munição de prata e distribuiu-a para estes... a jogada seria arriscada, mas era a única opção do grupo. Teriam que ir para o tudo ou nada, pois os seis pilares não conseguiriam resistir por muito mais tempo... e ainda faltava um bom par de horas para o raiar do sol...  

Cada grupo ficou com dois atiradores municiados com prata à frente. Os cinco restantes empunharam suas espingardas cartucheiras municiadas com sal... ninguém entendeu muito bem o que o boiadeiro queria fazer, mas como ele era o chefe, quem iria discutir? Ele mandou carregarem os cartuchos vazios com sal e apenas sal... os homens o olharam meio torto, mas quem estava pagando determinava as regras... e aí, acabaram com o estoque de sal da carroça que servia de cozinha... a bem da verdade, Jacinto também não acreditava muito no que mandou os homens fazerem... mas não ter seguido as instruções de Juvêncio na primeira vez os colocara nessa situação... portanto, o jeito agora era obedecer sem questionar... afinal, o delegado parecia saber o que estava fazendo...

Em certo momento Santana titubeou... o cansaço finalmente o vencera. Na mesma hora um redemoinho formou-se em sua posição. Foi quando Jacinto deu ordem para os homens armados com a carga de sal dispararem contra a coluna de vento.No mesmo instante em que foi atingida, a coluna se desfez. E a figura do deus da noite formou-se fora do círculo mágico...sua expressão de raiva por não conseguir invadir o local apavorou todos que o viram... e isso os fez mais alertas, pois não queriam que a entidade conseguisse invadir seu refúgio a céu aberto... 

Vendo que dificilmente quebraria a barreira que lhe daria o repasto tão desejado, Anhangá resolveu personificar-se um homem... um guerreiro. Cessou todas as atividades eólicas e o mundo como num passe de mágica tornou-se tranquilo, calmo. Juvêncio e sua turma continuavam como estavam desde o início. Anhangá dirigiu-se até onde nosso amigo se encontrava e então, em alto e bom som, o desafiou para uma luta mano a mano, onde o perdedor se submeteria àquele que vencesse a contenda. Prometeu que, durante a peleja, nada aconteceria ao acampamento. E, se fosse ele o derrotado, se comprometia a retornar ao lugar ao qual pertencia, ou seja, o Hades...

Juvêncio olhou de soslaio para Izabel, que fez um pequeno aceno afirmativo com a cabeça. Ele compreendeu.  Uma vez empenhada a palavra, Saturno não poderia voltar atrás. Mas... será que Juvêncio conseguiria vencer tão poderoso oponente? De qualquer forma, não havia muita escolha.  Ou enfrentava o desafio ou estaria condenando todo acampamento à morte...













 








 

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