o pesadelo
O
PESADELO
Estava
só. Encolhida, escondida, enregelada. O pavor me dominava. De
que tinha medo? Não podia precisar, com certeza. Mas, fosse o
que fosse, era algo apavorante. O simples farfalhar das folhas me
provocava arrepios. O uivo do vento pelas árvores era
assustador... Um barulho... um galho se partindo... então,
como que impulsionada por uma mola, me vejo a disparar mata
adentro....
Chegamos
em Campos à tardinha. Tinha já alguns meses que não
visitávamos vovó. Sempre acontecia algo que nos
obrigava a adiar a viagem. Primeiro, Ricardo ficou doente. Dois meses
de cama. Foi um período difícil. Mamãe ficou com
seus nervos em frangalhos. O resto da família também, é
claro. Finalmente, ele ficou bom. Logo a seguir, papai perdeu o
emprego. Novamente, a situação se complicou. Papai não
era um homem previdente. Com isso, e como éramos três
crianças, quase passamos fome. Quase, uma vez que papai se
virava como podia, para que nada nos faltasse. Se mamãe
trabalhava fora? Como, se Ronaldo tinha apenas dois anos? Aliás,
como já disse, eramos todos pequenos. Ricardo contava então
quatro anos e eu, seis. Por favor, não venham dizer que era
uma “escadinha”. Bem, como já disse, foi uma fase
difícil. Mas, finalmente, conseguimos vence-la. E tudo começou
a correr bem novamente. Até que um belo dia papai anunciou:-
iríamos visitar vovó. Ficamos todos felizes, claro.
Principalmente porque iríamos viajar. E eu adorava viajar
(adorava, não. Adoro. Mas quando se tem seis anos tudo é
mais belo, não é mesmo?).
Chegou
o grande dia. Quase não consegui dormir à noite, na
expectativa do passeio que faria no dia seguinte. O relógio
parecia parado, as horas não avançavam. E, quanto mais
próxima a hora da viagem, mais longos os minutos se tornavam.
Mamãe arrumou as malas, iriamos ficar um tempão com
vovó ( o tempo para as crianças avança de
maneira diferente da dos adultos.... dois dias parecem um mês,
um mês é como se fosse um ano. Engraçado como,
quando a gente cresce, o tempo parece voar. É como se nosso
relógio biológico acelerasse, como se tivesse pressa de
chegar ao seu ponto final, embora lutemos para atrasá-lo nem
que seja um décimo de segundo) e tínhamos que levar as
coisas mais necessárias para esse tempo. Não consegui
convencê-la de que minha boneca era necessária e, além
disso, a pobrezinha não queria ficar sozinha em casa – e
como é que ela iria fazer, se eu ia embora e ia deixa-la
sozinha - e então... bem, mamãe conseguiu me convencer
que o elefantinho do Ricardo e o ursinho do Ronaldo defenderiam
Lilita – era esse o nome de minha boneca – afinal, eram homens, e
homens não tem medo do Bicho-Papão. Finalmente aceitei
seus argumentos, embora não estivesse plenamente convencida.
Afinal, Ricardo e Ronaldo eram homens e também tinham medo.
Mas aí mamãe explicou que eles ainda eram pequenos, e
quando crescessem, não teriam mais. Mas, e ela? Por acaso
tinha medo do Papão, também? Não, ela não
tinha, ela já era gente grande, e o Papão não
assusta gente grande, me disse. Que bom, eu falei, então quero
ser gente grande logo. Mamãe sorriu. Fechou as malas e fomos
nos arrumar.
Finalmente, a
rodoviária. Um ônibus grande, creme e marrom, muito
bonito, encostou na plataforma. O nome estava escrito em vermelho,
tentei ler. As letras eram grandes, bem desenhadas. Na porta, o nome
de batismo do carro. Perguntei para a mamãe o que estava
escrito, ela me falou. “Rosa de Ouro”. Engraçado, já
vi rosa de papel, de plástico, rosa de verdade..... mas de
ouro, nunca. Nem cor de ouro. Já vi rosa amarela – o ouro é
amarelo – mas nunca vi uma com a cor da aliança da mamãe.
Então fiquei me perguntando como seria uma rosa de ouro. Se
fosse de metal como a aliança da mamãe, toda amarela,
não seria muito bonita, não. Afinal, o que deixa a rosa
bonita é o cabinho verde, cheio de folhinhas. Só os
espinhos é que são feios. Eles machucam e eu não
gosto deles.
Logo minha preocupação
com a rosa desapareceu. O ônibus começou a se movimentar
e a mudança de paisagem me fascinou. Fiquei com o rosto colado
na janela. Mas não foi fácil conseguir ficar na janela.
Briguei com Ricardo, ele disse que a janela era sua, eu disse que
não, eu é que iria ficar ali, começamos a
discutir... antes que nos pegássemos, papai interviu dizendo
que tinha duas janelas, uma com ele e outra com a mamãe, então
cada um iria ter a sua, que era muito feio o que estávamos
fazendo, onde já se viu esse comportamento, o que é que
as pessoas iriam pensar de nós, era tão feio duas
crianças bonitas discutindo, então era melhor pararmos,
senão ele iria dar um jeito... ficamos quietos. Papai mandou
Ricardo para junto de mamãe, eu permaneci onde estava. Não
ficamos zangados um com o outro. Afinal, se cada um tinha um vidro
para olhar, não valia a pena continuar a briga. Perdera a
graça...
O
mundo parecia voar do outro lado da janela. As árvores que
apareciam ao longe, de repente se tornavam borrões a sumir no
esquecimento. Bem longe, os pastos começavam a surgir. As
vaquinhas, como enfeites do presépio que mamãe arrumava
todo Natal, lá estavam, tão bonitinhas... e, de
repente, não estavam mais. O barulho gostoso do carro em
movimento foi fazendo meus olhos pesarem. Dali a pouco, eu me via a
correr, pegando as vaquinhas do presépio da mamãe e
colocá-las junto com meu gato de pelúcia ( a bem da
verdade ele não era meu – eu o havia encontrado no meio das
coisas da mamãe e acabei convencendo-a a dar-me de presente, O
que a gente não consegue com um pouquinho de choro?). Só
que as vaquinhas eram malvadas, não paravam quietas, queriam
ir embora, então desistí. Além disso, elas
queriam comer o pelo do meu gato, pensando que era capim...
engraçado, que eu me lembre, nunca vi capim branco e vermelho.
Se bem que, em sonho....
Finalmente papai me
chamou, chegávamos ao nosso destino. Um tempão. Deu
para contar as estrelinhas três vêzes. Visitei a Dona
Baratinha, ela me convidou para tomar café, não
aceitei, afinal não gosto de café. Ela então
disse que, se eu quisesse, poderia tomar leite de cabra. Eu, não.
Só tomo leite que a mamãe faz, aquele que vem naquela
lata amarela, com o desenho de uma vaquinha bonitinha perto de um
monte de letra. Vê lá se vou tomar leite de cabra, sei
lá o que é isso... depois, nem sabia que cabra dava
leite, vaca eu sei que dá, cachorra também.Só
que eu nunca quis tomar leite da Suzi, minha cachorrinha de
estimação. Não a chamo de cadela, não,
mamãe diz que é feio. Cão também não.
Cão é o diabo. Agora, cachorro... bem, cachorro é
de Deus, então posso falar. Mas eu não tinha um
cachorro, tinha uma cachorrinha. Só que eu nunca consegui
ficar com os filhinhos da Suzi. Eles nasciam pequeninos, feinhos...
quando ficavam bonitos, que nem bichinho de brinquedo, sumiam. Mamãe
dizia que eles iam passear e não achavam o caminho de casa, de
novo. Nunca entendi muito bem como é que eles saiam se o
portão só vivia fechado e só a mamãe e o
papai sabiam abrí-lo. Mas ela devia saber o que estava
falando.... Bem, mas eu disse que papai me chamava. Era hora de
descer do ônibus. A gente pegou as malas (quer dizer, meus
pais... a mala era tão grande, tão pesada...) e
embarcou num taxi... nome engraçado, esse... ele não
era tão bonito quanto o ônibus, nem tão grande...
bem, a gente entrou no táxi e aí o moço levou a
gente até a casa da vovó. Vovó morava na
fazenda, não era dela, não. Ela trabalhava para o
dono0, ele era japonês. Ela plantava arroz. Eu não
queria morar lá, não.... se morasse, ia ter que plantar
batatas. Mamãe vive me mandando plantar batatas. Não
gosto de batatas. Quer dizer, de comer, eu gosto. Batata frita,
cozida, purê... até de nhoque eu gosto, se bem que
nhoque nem parece batata, tem mais cara de macarrão... bem,
como eu estava dizendo, a gente chegou na casa de vovó. Só
tinha uma tia minha lá, o resto estava tudo na roça.
Minha tia não era que nem a mamãe, era mais nova. Não
era pequenininha, que nem eu. Era pequeninona.
A
tarde chegou. Estava fresca, gostosa. Dava vontade de correr pelo
campo. Mas o papai disse que não podia. Não faz mal, eu
pensei. Amanhã eu corro. Meus avós chegaram de
tardinha. Com eles, as outras tias, que não estavam em casa
quando a gente chegou. Tinha uma que já era moça, a
outra ainda não tinha crescido. Ficaram conversando até
tarde. Dormi. Se sonhei, não sei, não me lembro. Mas
sei que fiquei brincando com a Suzi a noite toda. Com ela e seus
filhinhos.E eram tão fofinhos... pareciam de brinquedo!
Acho
que choveu de noite. A cama estava molhada. Mas a mamãe não
quis acreditar em mim. Disse que eu era uma menina muito feia, que já
estava grande e não é certo molhar a cama. Mas não
fui eu. Não tenho culpa se choveu e molhou minha cama....
Naquele
dia meus avós não foram trabalhar. Acho que é
porque era domingo. De manhã fomos à missa, a igreja
ficava longe, acho que uns mil quilômetros de lá
(criança é exagerada...)
Tropeço
em uma raiz. O solo vem ao encontro de meu rosto. O gosto ácido
da terra molhada, misturado com o sabor quente de meu sangue me chega
à boca. Não consigo me controlar. As lágrimas do
desespero rolam por minha face. Após alguns segundos me
recomponho. Sento-me sob a copa da árvore em cuja raiz
tropecei, passo a escutar. Nenhum som se ouve, nem mesmo aqueles que
são característicos da noite. Para me acalmar (meu
coração parece querer pular por minha boca) fico a
acertar as dobras de minha saia com as pontas dos dedos. Ela está
suja, amassada, mas não posso perceber com clareza devido à
penumbra reinante. Machuquei o joelho durante a queda, ele está
latejante. Minha pulsação está acelerada.
Recosto-me ao tronco cerro os olhos, a imagem de minha infância,
minhas recordações brotam como a água que mina
da fonte. E me recordo daquele domingo na casa de meus avós...
A
gente foi buscar lenha no mato com a vovó.Fui eu, mamãe,
tia Lucia, tia Monica, a vovó e meus dois irmãozinhos.
Bem, é verdade que Ronaldo não sabia andar direito,
ainda, mas a tia Monica não largava dele. Fiquei com um pouco
de ciume. Mas só um pouquinho. Depois, quando começamos
a entrar no mato, até esqueci dos dois. Teve uma hora que me
distraí e quando fui ver, todo mundo tinha sumido. Mas não
fiquei com medo, não. O lugar era tão bonito...
Aqui
onde estou é lindo.... em volta da árvore em que estou
recostada, uma profusão de folhas se espalha. Não fosse
a minha situação e esse seria o paraíso para
mim. Massageio o joelho, não consigo conter o gemido que
escapa de meus lábios.
Procuro
escutar a mata, apenas aquele silêncio inquietante se
manifesta. Tento me acalmar... preciso me acalmar. Certas coisas não
existem, não podem existir. Quando se é criança,
quando se tem apenas seis anos, tudo é normal, pois o mundo é
mágico. Mas já sou adulta, tenho trinta anos... não
posso me deixar levar por fantasias.... mas, no entanto, eu ví....
exatamente como naquele domingo.....
Não
sei quanto tempo se passou desde que minha família sumiu.
Devia ficar com medo, mas é tudo tão bonito. Lá
atrás, perto do rio, ví um bicho comprido, igual a um
trem, todo colorido, correndo entre as folhagens. Era uma cobra. Não
mexí com ela, mamãe disse que não se deve mexer
com os bichos do mato, eles ficam muito bravos. Com a Suzi, não,
com ela eu posso mexer. Até seu rabo eu posso puxar que ela
não fica zangada. Agora, se eu puxar o rabo da cobra, ela me
morde. Acho que é porque ela só tem rabo. Coitada, não
tem nem pernas. Mas é bonita, em todo caso... Ví um
monte de passarinho cantando, tão bonitos. Tinha um que era
engraçado, tinha um topete que nem galo, só que era
todo de pena, não era de carne igual o galo, não. Era
muito mais bonito. O sol sumiu, começou a ficar escuro. Então
resolví chamar mamãe, afinal não gosto de dormir
sozinha, ainda mais no mato. Prefiro uma cama, pode ser a da minha
tia mesmo, parece com a minha. Só que ninguém me
respondeu. Gritei de novo e só os grilos me responderam.
Comecei a ficar com medo. A lua surgiu no céu, só que
não sei porque, não a achei bonita como nos outros
dias. Ela estava esquisita. Escutei um barulho, alguém se
aproximava. Fiquei contente, era mamãe que tinha vindo me
buscar. Gritei novamente para que ela soubesse onde eu estava.
Então....
Mamãe
mentiu para mim. O Bicho Papão existe sim. Ele parou na minha
frente, os dois olhos faiscando fogo, como a vovó me contava.
Todo coberto de pelos, um chiado engraçado saia de sua boca,
parecia que estava assoviando. Fiquei arrepiada. Uma baba nojenta
escorria de sua boca. Quando ele esticou os braços em minha
direção, saí correndo para fugir. “Voce não
me escapa”, ouvi o Papão gritar. Fez com que eu criasse asas
nos pés, mas toda hora que me voltava, o bicho estava perto de
mim. Até que me encurralou perto de uma pedra muito grande, de
onde saia um fio de água. Era a nascente do rio....
É
um pesadelo.... só pode ser! Quando a gente é criança,
a imaginação funciona a todo vapor. Mas já sou
adulta.... os monstros da infância não podem me
atacar... e, no entanto, tudo é tão real...
Parece
brincadeira. Ontem Rafael resolveu trazer-me e as crianças
para visitarmos minhas tias. Vovó ainda está forte,
antes que pense que ela morreu. Mas meu avô já se foi. O
campo está muito mudado, já não tem muito a ver
com aquele que existia a uns vinte anos atrás. Mas a mata
ainda é a mesma. Não sei porque, resolví
explorá-la. É como se algo me atraísse. Quando
me ví, estava como que hipnotizada pela beleza do lugar.... e
perdida. Exatamente como a anos atrás...
Chamo
mamãe novamente. O papai não posso, ele ficou
conversando com vovô. O monstro vem se aproximando, bem
devagarinho, meu coração tá disparado, acho que
ele vai pular fora de meu corpo. Estou apavorada, choro muito...
Grito, mas sinto que o escândalo que faço não vai
servir para nada, acho até que o bicho está gostando do
barulho... Ele estende as garras em minha direção.
Então...
Procuro
levantar-me. Me apoio na árvore, tentando recuperar o
equilíbrio. Dou um passo, o pé ainda dói
horrivelmente. Meu joelho está latejante. Mas tenho que sair
do local. Ouço um barulho. Fraco, de início. Aos
poucos, este vai aumentando sua intensidade. Não sei se é
meu medo que me faz sentir isso, mas a noite passa a ficar mais
negra, mais pesada. Minha pulsação está
acelerada, um gosto ruim, amargo, apodera-se de minha boca. Apesar da
dor que sinto na perna, começo a correr, fugir daquilo que
tanto me apavora...
Não
entendí bem o que aconteceu. Quando o bicho mau tentou me
pegar, uma luz brilhante meio rosa, meio azul, brotou da mina d'água.
Então, uma moça bonita apareceu, me cobriu com sua luz
e mandou o monstro sumir. Depois que ele se foi, ele me pegou em seu
colo e dormi. Quando acordei, estava perto de casa, com meus pais e
irmãos em minha volta. Fiquei feliz. Afinal, quando aquele
bicho malvado estava me perseguindo, cheguei a pensar que nunca mais
ia ver minha família de novo. Então papai me abraçou
e me fez prometer nunca mais me separar dos outros de novo, se por
acaso a gente estivesse em um lugar que não conhecesse.
Prometí....
Minha
saia se prendeu em um galho, puxo-a violentamente e continuo minha
fuga. O salto de meu sapato quebra, vou novamente ao chão.
Rápidamente me ponho de pé, descalço os sapatos
e os jogo fora. Continuo a correr descalça. Sinto as pedras e
gravetos me machucando. Mas não posso parar. Continuo minha
fuga. Então...
“Eu
te disse que voce é minha”, a voz gutural pronunciou. Eis
que me vejo frente a frente com o terror da minha infância.
Fico paralisada, sem ação. Desta vez a fada da pedra
não vem em meu socorro. O demônio aproxima-se lentamente
de mim, posso sentir seu hálito nauseabundo... Estende suas
garras em minha direção, como a anos atrás...
Não tornarei a ver Rafael e as crianças... os olhos
vermelhos como brasa não me perdem de vista por um
segundo...Sinto um esgar de sorriso cruel na criatura, como se
estivesse debochando de mim... suas garras tocam meu pescoço...
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